Foi editada a Lei nº 14.133/21, a nova Lei Geral de Licitações. Esta Lei dispõe sobre licitações e contratos administrativos no âmbito da Administração Pública.
As entidades que integram o Sistema S estão subordinadas à nova Lei?
A norma contida no art. 1º da nova Lei expressamente dispõe que “estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e abrange: I – os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, dos Estados e do Distrito Federal e os órgãos do Poder Legislativo dos Municípios, quando no desempenho de função administrativa; II – os fundos especiais e as demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Pública.
As entidades do Sistema S não integram a Administração Pública, direta ou indireta, e também não são entes controlados direta ou indiretamente pela Administração Pública.
A este propósito, confira-se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em acórdão proferido no RE 789.874:
Os serviços sociais autônomos integrantes do denominado Sistema “S”, vinculados a entidades patronais de grau superior e patrocinados basicamente por recursos recolhidos do próprio setor produtivo beneficiado, ostentam natureza de pessoa jurídica de direito privado e não integram a Administração Pública, embora colaborem com ela na execução de atividades de relevante significado social. Tanto a Constituição Federal de 1988, como a correspondente legislação de regência (como a Lei 8.706/93, que criou o Serviço Social do Trabalho – SEST) asseguram autonomia administrativa a essas entidades, sujeitas, formalmente, apenas ao controle finalístico, pelo Tribunal de Contas, da aplicação dos recursos recebidos.
Como não integram a Administração Pública, não se submeterão às normas da Lei nova, como não se submetiam às normas da Lei nº 8666/93. Sobre o tema já se pronunciou o Tribunal de Contas da União:
É aplicável a declaração de inidoneidade (art. 46 da Lei 8.443/1992) na ocorrência de fraude em licitações promovidas por entidades do Sistema S, pois, embora não se submetam à Lei 8.666/1993, a obrigatoriedade de licitar dos serviços sociais autônomos decorre da necessidade de observância aos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da economicidade, entre outros, assegurando-se, por consequência, igualdade de condições a todos particulares interessados na contratação.
Acórdão 1280/2018-TCU-Plenário
Contudo, as entidades do Sistema S tem o dever jurídico de licitar. Este dever decorre de sua peculiar natureza jurídica, e do fato de administrarem “recursos públicos[1] de natureza tributária, advindos de contribuições parafiscais e destinadas ao atendimento de fins de interesse público”[2].
As licitações e contratações das entidades do Sistema S são regidas pelos seus regulamentos internos. Sabe-se que há interpretações no sentido de que a Lei nº 8666/93 – e, portanto, por analogia, a futura lei de licitações – tem aplicação subsidiária para o Sistema S. O Tribunal de Contas da União tem precedente neste sentido:
Não há restrição a que licitantes ofereçam representações ao TCU, com fundamento no art. 113, § 1º, da Lei 8.666/1993, em face de licitações conduzidas no âmbito do Sistema S. Apesar de as entidades integrantes do Sistema se submeterem apenas subsidiariamente aos ditames da Lei 10.520/2002, da Lei 8.666/1993 e demais legislação correlata, devem respeitar os princípios gerais que regem a contratação pública.
(Acórdão 1635/2018-TCU-Plenário)
Defender que a Lei nº 8666/03 – e por analogia, a Lei nº 14.133/21 – tem aplicação subsidiária para o Sistema S implica reconhecer que, no caso de lacuna ou omissão dos Regulamentos Próprios a observância da Lei Geral de Licitações é compulsória.
Não parece a interpretação mais correta. Prefere-se aquela manifestada pelo Supremo Tribunal Federal antes referida, que aponta que a Lei nº 8666/93 não tem aplicação para o Sistema S.
Tal não significa, entretanto, que não possam se valer de normas contidas em leis destinadas à Administração Pública, no caso de omissão ou lacuna normativa do regulamento próprio, como referência.
Com efeito, há técnicas jurídicas contidas em leis ou normas infralegais destinadas à Administração Pública que podem ser adotadas, independentemente de previsão expressa nos regulamentos internos.
A Lei nº 14.133/21, neste sentido, contempla inúmeros institutos jurídicos que podem ser aproveitados, como referência, e incorporados à gestão administrativa ou inseridos como norma nos instrumentos convocatórios e nos instrumentos contratuais, ou, mediante edição de normas internas como portarias ou resoluções no âmbito de cada uma das entidades.
1ª Referência para as entidades do Sistema S: estudo técnico preliminar
É possível adotar, tendo como referência a nova lei, e como instrumento de gestão contratual, o denominado estudo técnico preliminar, que “é documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação que caracteriza o interesse público envolvido e a sua melhor solução e dá base ao anteprojeto, ao termo de referência ou ao projeto básico a serem elaborados caso se conclua pela viabilidade da contratação” (art. 6º XX do Projeto de Lei).
O estudo técnico preliminar deverá evidenciar o problema a ser resolvido e a sua melhor solução, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação, e conterá os seguintes elementos: I – descrição da necessidade da contratação, considerado o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público; II – demonstração da previsão da contratação no plano de contratações anual, sempre que elaborado, de modo a indicar o seu alinhamento com o planejamento da Administração; III – requisitos da contratação; IV – estimativas das quantidades para a contratação, acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhes dão suporte, que considerem interdependências com outras contratações, de modo a possibilitar economia de escala; V – levantamento de mercado, que consiste na análise das alternativas possíveis, e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar; VI – estimativa do valor da contratação, acompanhada dos preços unitários referenciais, das memórias de cálculo e dos documentos que lhe dão suporte, que poderão constar de anexo classificado, se a Administração optar por preservar o seu sigilo até a conclusão da licitação; VII – descrição da solução como um todo, inclusive das exigências relacionadas à manutenção e à assistência técnica, quando for o caso; VIII – justificativas para o parcelamento ou não da contratação; IX – demonstrativo dos resultados pretendidos em termos de economicidade e de melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis; X – providências a serem adotadas pela Administração previamente à celebração do contrato, inclusive quanto à capacitação de servidores ou de empregados para fiscalização e gestão contratual; XI – contratações correlatas e/ou interdependentes; XII – descrição de possíveis impactos ambientais e respectivas medidas mitigadoras, incluídos requisitos de baixo consumo de energia e de outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem de bens e refugos, quando aplicável; XIII – posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação para o atendimento da necessidade a que se destina.
O documento trata de análises e providências iniciais, que podem ser realizadas e adotadas pelas entidades do Sistema S, de modo a evitar erros e antecipar riscos que poderiam comprometer a integridade da licitação e do futuro contrato.
Para incorporar o estudo técnico preliminar na etapa preparatória das licitações a entidade não precisa de autorização legal, e pode utilizar as normas da nova lei de licitações como uma referência.
2ª Referência para as entidades do Sistema S: gerenciamento de riscos e mapa de riscos
A nova lei de licitações prevê, no art. 11, parágrafo único, que “a alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência, efetividade e eficácia em suas contratações”.
Há um dever jurídico de instituir processo de gestão de riscos nas contratações públicas. As entidades do Sistema S precisam aderir a este modelo. Não porque estejam obrigadas a isto pela Lei, mas porque se trata de uma modelagem que amplia a excelência e a qualidade das contratações.
A norma ABNT NBR ISO 31000:2009 especifica que “organizações de todos os tipos e tamanhos enfrentam influências e fatores internos e externos que tornam incerto se e quando elas atingirão seus objetivos. O efeito que essa incerteza tem sobre os objetivos da organização é chamado risco. Todas as atividades de uma organização envolvem risco. As organizações gerenciam o risco, identificando-o, analisando-o e, em seguida, avaliando se o risco deve ser modificado pelo tratamento a fim de atender seus critérios de risco…”[3].
Risco é, pois, o efeito da incerteza nos objetivos da empresa. Incerteza, diz a norma referida, “é o estado, mesmo que parcial, da deficiência das informações relacionadas a um evento, sua compreensão, seu conhecimento, sua consequência ou sua probabilidade[4], ou, em outros termos, é a “possibilidade de ocorrência de um evento que venha a ter impacto no cumprimento dos objetivos. O risco é medido em termos de impacto e de probabilidade”.[5]
As Guidelines for Succesful Public-Private Partnerships estabelecidas pela Comissão Européia definem risco como “qualquer fator, evento ou influência que ameace a conclusão bem sucedida de um projeto, em termos de prazo, custo ou qualidade”[6].
No plano das contratações, o risco implica em qualquer acontecimento ou intercorrência que possa produzir efeitos negativos na execução do contrato, impedindo que os resultados pretendidos pela entidade do Sistema S sejam plenamente alcançados, seja no que diz respeito ao planejamento da contratação, seja no plano da licitação ou no plano da execução do contrato.
De fato, toda a atividade humana ou conduta humana implica riscos. Não seria diferente no tocante à atividade licitatória e contratual do Sistema S.
Há contudo, riscos que são permitidos, ou socialmente tolerados, sendo mesmo alguns inevitáveis. Porém, há riscos que não são permitidos, e pois, são socialmente reprováveis e não aceitos. Tal se dá também no plano da gestão contratual.
Fundamental, assim, no que tange à governança dos contratos, a criação de sistema de gerenciamento de riscos contratuais. Gerenciamento de riscos é o “processo para identificar, avaliar, administrar e controlar potenciais eventos ou situações, para fornecer razoável certeza quanto ao alcance dos objetivos da organização”.[7]
Nos termos do contido na Instrução Normativa nº 05/17 da Secretaria de Gestão do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão:
Art. 25. O Gerenciamento de Riscos é um processo que consiste nas seguintes atividades:
I – identificação dos principais riscos que possam comprometer a efetividade do Planejamento da Contratação, da Seleção do Fornecedor e da Gestão Contratual ou que impeçam o alcance dos resultados que atendam às necessidades da contratação;
II – avaliação dos riscos identificados, consistindo da mensuração da probabilidade de ocorrência e do impacto de cada risco;
III – tratamento dos riscos considerados inaceitáveis por meio da definição das ações para reduzir a probabilidade de ocorrência dos eventos ou suas consequências;
IV – para os riscos que persistirem inaceitáveis após o tratamento, definição das ações de contingência para o caso de os eventos correspondentes aos riscos se concretizarem; e
V – definição dos responsáveis pelas ações de tratamento dos riscos e das ações de contingência.
Identificar, avaliar, tratar e estabelecer medidas de contingência no caso de concretização de eventos correspondentes aos riscos identificados que podem comprometer o resultado da licitação ou da execução contratual constitui uma medida indispensável de governança dos contratos.
Nos termos da citada norma administrativa, o gerenciamento de riscos se materializa no denominado mapa de riscos, que é o “documento elaborado para identificação dos principais riscos que permeiam o procedimento de contratação e das ações para controle, prevenção e mitigação dos impactos”.[8]
Com todos os riscos a que está sujeito o processo da contratação expressados no mapa de riscos, a entidade do Sistema S definirá condutas e procedimentos destinados ao seu tratamento ou contingenciamento.
Uma das possibilidades jurídicas em razão dos riscos identificados, é a sua alocação ou distribuição entre as partes contratantes. Esta distribuição dos riscos se expressa por intermédio da matriz de riscos.
A Lei nº 14.133/21 define matriz de riscos como:
Matriz de riscos: cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações:
a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econômico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo por ocasião de sua ocorrência;
b) no caso de obrigações de resultado, estabelecimento das frações do objeto com relação às quais haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico;
c) no caso de obrigações de meio, estabelecimento preciso das frações do objeto com relação às quais não haverá liberdade para os contratados inovarem em soluções metodológicas ou tecnológicas, devendo haver obrigação de aderência entre a execução e a solução predefinida no anteprojeto ou no projeto básico, consideradas as características do regime de execução no caso de obras e serviços de engenharia.
A matriz de riscos é um indispensável instrumento de governança nos contratos. Em razão dela se produz a alocação dos riscos contratuais prévia o que implica eficiência e economicidade na gestão do contrato. A alocação prévia de riscos contratuais evita a discussão judicial sobre a responsabilidade por riscos e propicia a diminuição de termos aditivos para revisão dos contratos.
3ª referência para as entidades do Sistema S: planejamento das contratações diretas
Os regulamentos próprios das entidades do Sistema S pouco tratam de planejamento da contratação direta, limitando-se a poucas regras. Já a Lei nº 14.133/21 contém uma disciplina mais adequada no que tange à preparação dela.
O art. 72 estabelece que o processo deverá ser instruído com os seguintes documentos: Art. 72. O processo de contratação direta, que compreende os casos de inexigibilidade e de dispensa de licitação, deverá ser instruído com os seguintes documentos: I – documento de formalização de demanda e, se for o caso, estudo técnico preliminar, análise de riscos, termo de referência, projeto básico ou projeto executivo; II – estimativa de despesa, que deverá ser calculada na forma estabelecida no art. 23 desta Lei; III – parecer jurídico e pareceres técnicos, se for o caso, que demonstrem o atendimento dos requisitos exigidos; IV – demonstração da compatibilidade da previsão de recursos orçamentários com o compromisso a ser assumido; V – comprovação de que o contratado preenche os requisitos de habilitação e qualificação mínima necessária; VI – razão da escolha do contratado; VII – justificativa de preço; VIII – autorização da autoridade competente.
Perceba-se que, de acordo com a Lei, as etapas do planejamento da contratação direta são similares às etapas e condutas que devem ser cumpridas pelos agentes públicos no processo destinado à licitação. Esta sistemática é bastante adequada. O processo da contratação direta, tal qual o processo destinado à licitação, tem função idêntica, qual seja, selecionar alguém para contratar com ele. Nesta medida, se pode afirmar que sob certo sentido – o de que tanto o processo de contratação direta como a licitação se destinam a selecionar contratado – licitação e contratação direta tem a mesma finalidade e são, sob tal aspecto, são a mesma coisa. Assim, não há sentido lógico ou jurídico em se considerar que a uma entidade do Sistema S pode ser menos zelosa com o planejamento de uma contratação direta do que seria quando configura uma licitação.
Há um dever jurídico de excelência quando do planejamento da contratação direta. As normas contidas na Lei nº 14.133/21 podem contribuir muito para auxiliar no cumprimento deste dever.
Implementação de institutos jurídicos com base na Lei nº 14.133/21: instrumento convocatório, normas internas ou revisão dos regulamentos próprios
Abordou-se apenas alguns institutos jurídicos tratados no Lei 14.133/21. A Lei contém muitas outras normas inovadoras e técnicas de gestão que podem contribuir muito para a eficiência e a eficácia das contratações das entidades integrantes do Sistema S.
Estes institutos podem ser adotados, alguns, mediante simples previsão no instrumento convocatório. Outros podem demandar edição de normas internas, como portarias ou resoluções.
Há, contudo, importante referencial para a revisão e atualização dos regulamentos próprios, em vigor há muitos anos.
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[1] Os recursos geridos pelas entidades do Sistema S têm natureza pública e sua utilização deve estar vinculada aos objetivos institucionais da entidade, sob pena de desvio de finalidade, ocorrência que sujeita os responsáveis ao julgamento pela irregularidade de suas contas, com imputação de débito e aplicação de multa. (Acórdão 2509/2014-TCU-Plenário)
[6] P. 50. No original: “A risk is defined as any factor, event or influence that threatens the successful completion of a project in terms of time, cost or quality”.
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