Só é inexigível a licitação para o que é singular

Nova Lei de Licitações

No julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 669.347/SP, o Superior Tribunal de Justiça reafirmou entendimento que prevalece na sua jurisprudência, segundo o qual “A consumação do crime descrito no art. 89 da Lei n. 8.666/1993, agora disposto no art. 337-E do CP (Lei n. 14.133/2021), exige a demonstração do dolo específico de causar dano ao erário, bem como efetivo prejuízo aos cofres públicos”. E, como no caso não se verificavam esses requisitos, decidiu pela absolvição do paciente da prática prevista no art. 89 da Lei nº 8.666/1993.

Além desses fundamentos, constou da Ementa do Acórdão que, “Conforme disposto no art. 74, III, da Lei n. 14.133/2021 e no art. 3º-A do Estatuto da Advocacia, o requisito da singularidade do serviço advocatício foi suprimido pelo legislador, devendo ser demonstrada a notória especialização do agente contratado e a natureza intelectual do trabalho a ser prestado”.

Ainda que esta razão não tenha sido determinante para fundamentar a decisão, chama atenção o fato de o Superior Tribunal de Justiça apontar que, com base na literalidade da norma prevista no inciso III do art. 74 da Lei nº 14.133/2021, será possível admitir a contratação direta por inexigibilidade de licitação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, sem que reste demonstrada a natureza singular do objeto.

[Blog da Zênite] Só é inexigível a licitação para o que é singular

Na obra “Dispensa e inexigibilidade de licitação: Aspectos jurídicos à luz da Lei nº 14.133/2021”, que escrevemos em parceria com o professor Edgar Guimarães e que foi recentemente publicada pela Editora Forense (https://www.grupogen.com.br/dispensa-e-inexigibilidade-de-licitacao-9786559643097), defendemos entendimento diametralmente oposto a este adotado pelo Superior Tribunal de Justiça:

“A interpretação literal do dispositivo legal conduz à compreensão de que a Lei nº 14.133/2021 autoriza a contratação direta por inexigibilidade de licitação de qualquer um dos serviços indicados nas alíneas do inciso III em exame, desde que o contratado seja profissional ou empresa de notória especialização.

Isso porque, a redação do dispositivo informa ser inexigível a licitação quando inviável a competição, em especial nos casos de contratação dos seguintes serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com profissionais ou empresas de notória especialização.

Ocorre que, precisamos deixar claro que não é qualquer serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual dentre aqueles listados nas alíneas do inciso III do art. 74 da Lei nº 14.133/2021 que pode ser contratado diretamente por inexigibilidade de licitação com empresas ou profissionais notoriamente especializados.

Dito de outro modo, ainda que a Lei nº 14.133/2021 não tenha estabelecido textualmente exigência nesse sentido, entendemos que a contratação direta por inexigibilidade de licitação com fundamento no inciso III do art. 74 em tela somente se justificará se o objeto, além de envolver a execução de serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual, apresentar natureza singular, ou seja, revelar-se excepcional, incomum ao cotidiano administrativo, diferenciando-se de outros similares a ponto de ser considerado peculiar, motivo pelo qual sua contratação requer a seleção de profissional ou empresa de notória especialização.

A razão para formarmos essa conclusão decorre do fato de que somente se admite a contratação direta por inexigibilidade de licitação quando inviável a competição e, no caso, o simples fato de o objeto pretendido envolver a execução de serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual não torna inviável a competição. Tanto isso é verdadeiro que a própria Lei nº 14.133/2021 estabelece no seu art. 36, § 1º, inciso I que para a contatação de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, o critério de julgamento de técnica e preço deverá ser preferencialmente empregado.

Ora, se o simples fato de o objeto consistir na execução de um serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual dentre aqueles descritos nas alíneas do inciso III do art. 74 fosse suficiente para justificar a sua contratação direta por inexigibilidade de licitação, não faria sentido a Lei nº 14.133/2021 prever que a contratação desses serviços justifica a adoção preferencial do critério de julgamento de técnica e preço.

Com base nisso, insistimos, a contratação direta por inexigibilidade de licitação de serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual somente se justifica quando preenchido o pressuposto para o cabimento da inexigibilidade de licitação, qual seja, a inviabilidade de competição.

No caso, o que torna inviável a competição é a inexistência de critérios objetivos para o desenvolvimento da licitação e essa condição somente se forma quando o serviço pretendido apresentar natureza singular. Nesse contexto, entendemos como serviço técnico singular aquele cuja execução requer o emprego de atributos subjetivos do seu executor como elementos essenciais para sua execução satisfatória, a exemplo da genialidade e da racionalidade humanas. Não se trata, pois, de tarefas que possam ser executadas mecanicamente ou segundo protocolos, métodos e técnicas preestabelecidos e conhecidos que permitam a definição de parâmetros objetivos para sua mensuração.

Serviços com essas características não permitem a fixação de critérios técnicos de forma objetiva para análise e julgamento das propostas, de sorte a resolver a licitação com base no menor preço entre aquelas ofertas que atendam os critérios mínimos definidos. E, justamente por não admitirem a fixação de critérios técnicos de forma objetiva, também afastam a possibilidade de se promover a licitação adotando o critério de julgamento de técnica e preço.

Observa-se que essa compreensão encontra amparo em precedente do Supremo Tribunal Federal, que no julgamento da Ação Penal nº 348/SC firmou o seguinte entendimento, consoante se extrai da Ementa do Acórdão:

‘2. ‘Serviços técnicos profissionais especializados’ são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. Nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo. Daí que a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços – procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo – é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do ‘trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato’ (cf. o § 1º do art. 25 da Lei 8.666/1993). O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuem notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. Ação Penal que se julga improcedente’.

Convém destacarmos que o entendimento ora adotado, segundo o qual, ainda que Lei nº 14.133/2021 não faça remissão à necessidade de o serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual para ser contratado diretamente por inexigibilidade de licitação deva, necessariamente, possuir natureza singular espelha a orientação consagrada no âmbito da jurisprudência do Tribunal de Contas da União.

Nesse sentido, citamos que no julgamento do Acórdão nº 2.832/2014 – Plenário, a Corte de Contas federal concluiu que “Na contratação de serviços advocatícios, a regra geral do dever de licitar é afastada na hipótese de estarem presentes, simultaneamente, a notória especialização do contratado e a singularidade do objeto. Singular é o objeto que impede que a Administração escolha o prestador do serviço a partir de critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação”.

Em razão disso, não obstante a redação da Lei nº 14.133/2021 ter deixado de exigir que o serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual possua natureza singular para autorizar sua contratação por inexigibilidade de licitação, tal como fazia o inciso II do art. 25 da Lei nº 8.666/1993, considerando que não sendo singular, ao menos em tese, existirão critérios objetivos que afastarão a configuração de hipótese de inviabilidade de competição, o que, por consequência, afasta o cabimento da contratação direta por inexigibilidade de licitação, entendemos que o teor da Súmula nº 39 do Tribunal de Contas da União deva se manter atual em face da nova Lei de Licitações:

‘A inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços técnicos com pessoas físicas ou jurídicas de notória especialização somente é cabível quando se tratar de serviço de natureza singular, capaz de exigir, na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação, nos termos do art. 25, inciso II, da Lei 8.666/1993’. (Destacamos.)

Se a inexigibilidade de licitação somente é cabível quando a contratação de serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual recair sobre serviço singular, que assim o é por exigir na seleção do executor de confiança, grau de subjetividade insuscetível de ser medido pelos critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo licitatório, pode-se concluir que, não se tratando de serviço de natureza singular a seleção do executor poderá, então, se basear em critérios objetivos, o que viabiliza a instauração de processo licitatório.

Vale destacar que, sob a luz da Lei nº 13.303/2016, que institui o regime jurídico das licitações e contratações das empresas estatais e que traz hipótese de contratação direta por inexigibilidade de licitação similar àquela contida no art. 74, inciso III da Lei nº 14.133/2021, o Tribunal de Contas da União manteve orientação de que somente é cabível a contratação direta por inexigibilidade de licitação quando o serviço técnico especializado de natureza predominantemente intelectual possuir natureza singular, conforme se infere a partir do Enunciado do Acórdão nº 2.761/2020 – Plenário:

‘A contratação direta de escritório de advocacia por empresa estatal encontra amparo no art. 30, inciso II, alínea “e”, da Lei 13.303/2016, desde que presentes os requisitos concernentes à especialidade e à singularidade do serviço, aliados à notória especialização do contratado’.

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Enfrentada a situação com base nessa ordem de ideias, ainda que os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, mesmo quando proferidos em matéria de direito penal, sirvam como importante fonte para orientar a aplicação da Lei nº 14.133/2021, fato é que conforme estabelece a Constituição Federal, o controle da legalidade dos atos administrativos compete aos Tribunais de Contas e, nesse sentido, é preciso ressaltar que a orientação adotada pelo Tribunal de Conta da União a respeito da matéria se alinha com o entendimento que defendemos na obra citada, revelando-se, a nosso ver, mais prudente e conservador continuar entendendo que, não obstante a literalidade do inciso III do art. 74 da Lei nº 14.133/2021, a contratação direta por inexigibilidade de licitação, de serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, continua a exigir a demonstração da natureza singular do objeto, além da demonstração da notória especialização do contratado.

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