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Embora os contratos firmados pela Administração Pública com particulares possuam uma forma peculiar de pagamento, a ordem bancária, algumas empresas contratadas têm emitido duplicatas comerciais com lastro nesses contratos (os chamados “contratos administrativos”). Isso tem gerado, em consequência, a inscrição do órgão da Administração Pública direta em cadastros de inadimplentes, devido à reação em cadeia no mercado financeiro.
O assunto, diversamente do enfoque dado quando se exige a inscrição de empresas comerciais, deve ser apreciado segundo dois ramos distintos do Direito: o Administrativo, diante da participação ativa, num dos polos, da Administração Pública, e o Comercial, em face da adoção de peça típica dessa área do direito, o título de crédito.
Da premissa inicial, verifica-se, preliminarmente, a dificuldade de delineamento, uma vez que os direitos mencionados demandam abordagens e interpretações oriundas de dois ramos distintos do conhecimento jurídico.
Em princípio, a situação não reúne características de adoção supletiva do Direito Comercial pelo Direito Administrativo, uma vez que a adoção de títulos de créditos no mercado financeiro é prática comum, albergada pelo Direito Comercial.
A emissão de “duplicata” (também conhecida como “duplicata de fatura”) pode ocorrer, dentre outras hipóteses, no momento da extração da fatura de venda, quando, na terminologia comercialista, o vendedor poderá sacar uma duplicata no valor correspondente à venda, passando a mesma a circular no mercado financeiro como título de crédito, que, não obstante ser facultativa, afigura-se como único documento desse tipo passível de ser sacado com fundamento em contrato de compra e venda celebrado, conforme dispõe o art. 2º da Lei nº 5.474/1968.
Além de outros requisitos, destaca-se que, para a sua validade, faz-se mister a existência da declaração do comprador de reconhecimento de sua exatidão e da obrigação de pagá-la (aceite cambial). Todavia, a norma reguladora do assunto acatou o instituto do “suprimento do aceite”, que possibilita, entre outras situações, o protesto da duplicata sem aceite, desde que acompanhada de documento comprobatório da remessa ou da entrega do bem adquirido.
Essa é a base que sustenta o procedimento das empresas fornecedoras da Administração Pública direta para a extração de duplicatas referentes aos contratos celebrados.
Ocorre que a Administração Pública direta possui forma peculiar e específica para pagamento, qual seja, como já mencionado, a Ordem Bancária, com depósito direto do pagamento na conta corrente do contratado, descaracterizando completamente a necessidade de emissão de duplicatas.
É certo que a Lei nº 14.133/2021 trouxe avanços nos procedimentos de pagamentos realizados pela Administração Pública, permitindo alternativas como o pagamento em conta vinculada e reforçando a transparência por meio da divulgação mensal da ordem cronológica de pagamentos. Contudo, a ordem bancária permanece como prática usual no cotidiano da Administração Pública.
A inscrição, portanto, é irregular e ilegítima, pois contraria os princípios de impenhorabilidade dos bens públicos e continuidade dos serviços públicos, além de ferir a regra de que os contratos administrativos estão sujeitos a controle e execução judicial específica (e não a mecanismos de cobrança próprios do direito privado).
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