1. Em fevereiro de 2005, Rogério Santana, então Secretário de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, afirmava que o pregão eletrônico era mais vantajoso do que o pregão presencial. Ele noticiou, em matéria veiculada no site do Governo Federal (Comprasnet), que em certas ocasiões o pregão eletrônico propiciaria o dobro de participantes do que o pregão presencial, o que faria com que a Administração economizasse recursos. Em que pese tais vantagens, a mesma matéria relata que, no ano de 2004, o governo federal realizou 3.024 pregões eletrônicos contra 11.257 pregões presenciais.
Para inverter essa relação, a Presidência da República lançou o Decreto Federal n. 5.450/2005, que passou a qualificar o pregão eletrônico como preferencial, admitindo sua não utilização apenas nos casos de comprovada inviabilidade.[1] A finalidade, claríssima, era fazer com que o pregão eletrônico prevalecesse sobre o presencial.
De acordo com as informações do “Painel Processos de Compras” do Governo Federal (paineldecompras.planejamento.gov.br), obtidas em acesso de abril de 2019, dos pregões realizados em 2019, 99,2% correspondem a pregões eletrônicos e apenas 0,08% a pregões presenciais. O Decreto Federal n. 5.450/2005, na prática, deu cabo do pregão presencial, pelo menos no Governo Federal. O objetivo do Ministério do Planejamento, anunciado quando da publicação do Decreto Federal n. 5.450/2005, foi mais do que cumprido.
2. O intento de desidratar o pregão presencial contou em muito com a ajuda do Tribunal de Contas da União, que comprou a briga de peito aberto, lançando-se numa interpretação extremada dos dispositivos do Decreto Federal n. 5.450/2005 acerca da preferência ao pregão eletrônico.[2] Sem fundamento, passou a presumir que o pregão presencial representa solução antieconômica, forçando, inclusive, o Judiciário e o Sistema “S” a adotá-lo, embora não obrigados a seguir o Decreto Federal n. 5.450/05.[3] [4] O Tribunal bateu firme, inclusive sancionando agentes administrativos que insistiram em se aventurar com o pregão presencial.[5]
3. Com o esforço conjunto do Decreto Federal n. 5.450/2005 e do Tribunal de Contas da União, o pregão presencial tornou-se marginal, um moribundo, malquisto e desprezado, que representa parcela ínfima das licitações federais. Não concordo. Gostaria que o pregão presencial fosse reanimado e revalorizado. Com espírito de colaboração, faço publicamente a minha defesa do pregão presencial, especialmente no momento que o Congresso Nacional avança na discussão de uma nova lei geral de licitações e o Ministério da Economia leva à audiência pública minuta de novo decreto sobre pregão eletrônico.
4. A minha defesa do pregão presencial não significa crítica ao pregão eletrônico. Aprecio o pregão eletrônico. Desenrolando-se via internet, ele acaba encurtando as distâncias e, com isso, amplia a competição, uma vez que empresas e pessoas distantes do lugar da licitação são incentivadas a participar dela, porque se livram dos custos de deslocamento. Basta acessarem a internet.
5. Sem ignorar as virtudes do pregão eletrônico, também aprecio o pregão presencial. Ambos têm os seus méritos. Um dos aspectos que mais estimo no pregão presencial é que nele o pregoeiro tem condições de conduzir a licitação com mão mais firme, olho no olho dos licitantes. Presencialmente é mais fácil perceber alguma distorção, analisar com mais acuidade o objeto ou proceder com mais facilidade a diligências, ou mesmo dispor de melhores condições para travar negociação, expondo com desenvoltura e ênfase os argumentos. Na minha opinião, há casos em que o pregão presencial mostra-se mais vantajoso.
No pregão eletrônico perde-se a ênfase. Naturalmente, o pregoeiro, comunicando-se por meio de um chat, vê o seu poder de persuasão sobre os licitantes ser bastante reduzido. Essa situação pode ser favorável ou desfavorável, dependendo da perspectiva e dos casos concretos que se apresentem. Pode ser favorável porque a licitação em si torna-se mais impessoal e minimiza-se o risco de o pregoeiro praticar atos arbitrários. Noutro lado, pode ser desfavorável para muitas licitações já sabidamente problemáticas, difíceis de serem realizadas, em que a intervenção ativa do pregoeiro produziria benesses ao interesse público.
Acrescenta-se que muitos bens e serviços, conquanto qualificados como comuns, por vezes demandam análise mais rigorosa. Tanto isso é verdade que a Administração, com certa frequência, exige amostras ou provas de conceito em pregões. Nesses casos o pregão eletrônico não costuma ser a melhor solução. Ora, é estranho exigir amostras ou realizar provas de conceito, coisas inevitavelmente presenciais, em procedimento que se desenvolve pela internet. Não que seja proibido; mas é no mínimo estranho. A licitação acaba meio eletrônica e meio presencial, dado que uma parte dela, referente às amostras e às provas de conceito, acaba caindo no presencial. Se for para exigir amostras ou provas de conceito, que se prefira de uma vez o pregão presencial.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, há pregões em que se exige dos licitantes a apresentação de planilhas de composição de custos bastante complexas, como ocorre, com frequência, com os contratos de terceirização de serviços, como vigilância, limpeza etc. Também há licitações com históricos de preços inexequíveis, em que se consegue projetar antecipadamente a necessidade de intervenção mais ativa do pregoeiro, diligências e questionamentos sobre o preço, sobre atestados técnicos e sobre a qualificação econômico-financeira dos licitantes. Nesses casos, a sistemática do pregão eletrônico também pode desenhar-se desvantajosa, especialmente se a avaliação não se restringir à proposta de preços recebida em licitação e envolver, como obviamente deve ser, custos indiretos e aspectos qualitativos, notadamente acerca da execução do futuro contrato.
6. O que defendo, pura e simplesmente, é que em muitas situações o pregão presencial é a melhor opção. E, se assim for, que a Administração ainda tenha a possibilidade e não encontre tantos obstáculos jurídicos para realizar o procedimento presencial. É justamente por isso que o Legislador, quando da Lei n. 10.520/2002, prescreveu que a escolha pelo pregão presencial ou eletrônico dá-se em exercício de competência discricionária. Que se confie e que se tenha deferência à sensibilidade dos agentes administrativos para que eles decidam diante das especificidades de cada caso concreto, restaurando-se o prestígio e a grande utilidade do pregão presencial.
[1] Ressalvo que não pretendo aqui discutir a legalidade da medida – entendo até que é legal, desde que restrita à administração direta federal (Pregão Presencial e Eletrônico. 7. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015). O que quero discutir é a conveniência dela, se o pregão presencial ainda deve ser uma possibilidade para a Administração Pública ou se deve ser mesmo deixado de lado.
[2] São vários os acórdãos com esse teor, podendo-se citar, por ilustração: (i) TCU, Acórdão n. 1453/2009, Plenário. Rel. Min. Marcos Bemquerer. Julg. 01.07.2009. (ii) TCU, Acórdão n. 2272/2011, Plenário. Rel. Min. Augusto Sherman, Julg. 24.08.2011. (iii) TCU, Acórdão n. 2292/2012, Plenário. Rel. Min. Weder Oliveira, Julg. 29.08.2018. (iv) TCU, Acórdão n. 2290/2017, Plenário. Rel. Min. Ana Arraes. Julg. 11.10.2017. (v) TCU, Acórdão n. 505/2018, Plenário. Rel. Augusto Nardes. Julg. 14.03.2018. (vi) TCU, Acórdão n. 713/2019, Plenário. Rel. Min. Bruno Dantas. Julg. 27.03.2019.
[3] TCU, Acórdão n. 1515/2011, Plenário. Rel. Min. Raimundo Carreiro. Julg. 08.06.2011.
[4] TCU, Acórdão n. 2165/2014, Plenário. Rel. Min. Augusto Sherman. Julg. 20.08.2014.
[5] TCU, Acórdão n. 825/2014, Plenário. Rel. Min. Ana Arraes. Julg. 02.04.2014.