A Lei nº 14.133/2021 encontra-se em vigor desde o dia 1º de abril deste ano e gradativamente, ao longo dos próximos dois anos contados a partir desta data, passará a ser aplicada até que o final deste prazo substituirá, definitivamente, a Lei nº 8.666/1993, a Lei nº 10.520/2002 e a Lei nº 12.462/2011.
Sendo assim, é preciso se preparar para aplicar a nova lei, especialmente de modo a conseguir extrair de seus dispositivos o verdadeiro e adequado sentido da norma, o que nem sempre é fácil, haja vista a interpretação meramente literal não ser suficiente, em todos os casos.
Nesse contexto, a as normas jurídicas não se confundem com a simples letra da lei. Dois exemplos, tratando da responsabilidade subsidiária trabalhista da Administração tomadora de serviço terceirizado, deixam claro isso. Observe-se.
A respeito da responsabilidade subsidiária trabalhista da Administração tomadora de serviço terceirizado, a Lei nº 14.133/2021 reconheceu o entendimento já firmado no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior do Trabalho, segundo o qual, nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração responderá subsidiariamente pelos encargos trabalhistas devidos pela empresa contratada se comprovada falha na fiscalização do cumprimento dessas obrigações.
Exatamente nesse sentido se consolidou o entendimento a respeito do assunto no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade nº 16, em novembro de 2010. Do mesmo modo, essa orientação reflete o entendimento estabelecido no âmbito do Poder Judiciário trabalhista, por meio da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho.
Assim, a fim de prevenir a formação dessa responsabilidade, a Lei nº 14.133/2021 traz a seguinte previsão no § 3º do seu art. 121:
“§ 3º Nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, para assegurar o cumprimento de obrigações trabalhistas pelo contratado, a Administração, mediante disposição em edital ou em contrato, poderá, entre outras medidas:
I – exigir caução, fiança bancária ou contratação de seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas;
II – condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato;
III – efetuar o depósito de valores em conta vinculada;
IV – em caso de inadimplemento, efetuar diretamente o pagamento das verbas trabalhistas, que serão deduzidas do pagamento devido ao contratado;
V – estabelecer que os valores destinados a férias, a décimo terceiro salário, a ausências legais e a verbas rescisórias dos empregados do contratado que participarem da execução dos serviços contratados serão pagos pelo contratante ao contratado somente na ocorrência do fato gerador.”
É verdade que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece que verbas do FGTS possuem natureza trabalhista e social, mas o fato é que os servidores designados para atuar como fiscais de contratos de terceirização nem sempre possuem formação jurídica, razão pela qual podem desconhecer essa compreensão.
E, nesse caso, o dispositivo legal faz menção expressa apenas a obrigações e verbas trabalhistas, o que poderia, com base em uma interpretação literal, levar a conclusão de que a natureza jurídica das verbas do FGTS é fundiária e não trabalhista.
Desse modo, com base em interpretação literal do dispositivo legal, seria possível concluir que a Lei nº 14.133/2021 admite que a Administração condicione o pagamento apenas a demonstração de verbas trabalhistas, o que impediria promover a retenção do valor devido à empresa contratada se esta não apresentasse o comprovante de depósito do FGTS, por exemplo.
Da mesma forma, também com base em interpretação literal do dispositivo legal, a Administração somente poderia realizar o pagamento diretamente aos empregados alocados na prestação do serviço no caso de inadimplemento de verbas trabalhistas.
De plano, afasta-se qualquer cogitação de interpretação literal na situação em exame. A razão para tanto é simples: a finalidade do dispositivo legal consiste em prever instrumentos e medidas capazes de assegurar o adimplemento das obrigações devidas pela empresa contratada em face da mão de obra alocada na execução do contrato, evitando assim possível imputação de responsabilidade subsidiária à Administração tomadora do serviço. Desse modo, na medida em que a Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho estabelece que “A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral” e que a condenação imposta pelo Poder Judiciário trabalhista alcança as verbas fundiárias, não faz sentido algum limitar o alcance das medidas preventivas apenas às verbas trabalhistas.
Ao invés disso, com base em interpretação finalística, deve-se reconhecer que a finalidade do dispositivo legal objetiva assegurar o adimplemento de todas as obrigações devidas pela empresa contratada à mão de obra alocada na prestação do serviço que possam determinar a imputação de responsabilidade subsidiária à Administração pelo pagamento.
Em alinhamento com essa orientação, destaca-se que o art. 50 da Lei nº 14.133/2021 prevê que “Nas contratações de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, o contratado deverá apresentar, quando solicitado pela Administração, sob pena de multa, comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em relação aos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato, em especial quanto ao: (…); III – comprovante de depósito do FGTS;”
Outra questão que merece atenção é o fato de o § 3º do art. 121 da Lei nº 14.133/2021 ter previsto que nas contratações de serviços contínuos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a Administração, mediante disposição em edital ou em contrato, poderá, entre outras medidas, promover a retenção do pagamento devido à empresa contratada no caso de não ser comprovado o pagamento das verbas trabalhistas vencidas relativas ao contrato.
Novamente, com base em interpretação literal do dispositivo legal, seria possível concluir que a retenção do pagamento devido à empresa contratada, no caso de não restar comprovada a quitação das obrigações trabalhistas vencidas relativas ao contrato, somente será possível se houver previsão nesse sentido no edital ou no contrato. Por consequência, não havendo previsão expressa nos instrumentos convocatório e contratual estabelecendo essa condição, restaria vedada a retenção de pagamento no caso de não ser demostrada a aludida quitação.
Mais uma vez, rechaçamos interpretação literal que conduza a essa conclusão. E, novamente, a razão para tanto é simples: a retenção do pagamento, nesse caso, possui natureza preventiva, acautelatória, razão pela qual não requer previsão contratual para ser adotada.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.241.862/RS, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que “se a Administração pode arcar com as obrigações trabalhistas tidas como não cumpridas quando incorre em culpa in vigilando (mesmo que subsidiariamente, a fim de proteger o empregado, bem como não ferir os princípios da moralidade e da vedação do enriquecimento sem causa), é legítimo pensar que ela adote medidas acauteladoras do erário, retendo o pagamento de verbas devidas a particular que, a priori, teria dado causa ao sangramento de dinheiro público”.
Vê-se, assim, que a retenção em situação dessa espécie assume natureza acautelatória, com o objetivo de evitar que a Administração efetue o pagamento para a empresa e, posteriormente, seja condenada pelo Poder Judiciário trabalhista a realizar o pagamento das verbas trabalhistas aos empregados alocados na execução do contrato.
Considerando a supremacia do interesse público em face do interesse privado da empresa contratada que está inadimplente em relação ao pagamento das verbas trabalhistas e fundiárias decorrentes da execução do contrato, nada mais natural do que reconhecer o poder implícito da Administração para adotar as medidas necessárias e compatíveis para resguardar os interesses públicos sob sua tutela.
Exatamente nesse sentido formou-se o entendimento do Tribunal de Conta da União no Acórdão nº 3.301/2015 – Plenário, quando reconheceu que, não obstante a falta de previsão nos instrumentos convocatório e contratual tratando da retenção de valores devidos à empresa contatada, essa retenção encontra fundamento nos “’poderes implícitos’, princípio basilar de hermenêutica constitucional, segundo o qual a outorga de competência a determinado ente estatal importa no deferimento implícito, a esse mesmo ente, dos meios necessários à sua consecução”.
Na mesma ocasião, o Tribunal de Conta da União também reconheceu que a “Retenção parcial não constitui sanção, mas medida preventiva e acautelatória, destinada a evitar que a inadimplência da contratada com suas obrigações trabalhistas cause prejuízo ao erário”.
Ora, na medida em que cabe à Administração tutelar o interesse público que lhe cabe administrar, podendo para tanto se valer dos meios e recursos mais adequados e compatíveis para o atingimento dos fins pretendidos, resta evidente que, ainda que não prevista nos instrumentos convocatório e contratual, a retenção de valores devidos à prestadora de serviços continuados com dedicação de mão de obra, para fazer frente ao descumprimento de obrigações trabalhistas, revela-se medida lícita, pois, do contrário, o ente estatal pode ser responsabilizado por essas obrigações.
Desse modo, demonstramos a partir dessas duas situações que a simples interpretação literal da Lei nº 14.133/2021 pode determinar sérios riscos para os agentes que a aplicarão, o que prova a lição de Engish, citada pelo professor Marçal Justen Filho, segundo a qual “não só a lei pode ser mais inteligente do que o seu autor, como também o intérprete pode ser mais inteligente do que a lei”. No caso, a fim de resguardar a imputação de responsabilidade aos agentes públicos que lidam com a aplicação da Lei nº 14.133/2021, entendemos que o intérprete da lei precisará ser mais inteligente do que a lei!
(JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 7. ed. São Paulo: Dialética, p. 77.)
* Esse texto foi editado para melhor expressar a mensagem pretendida pelo seu autor.
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