O Tribunal de Contas da União (TCU) realizou acompanhamento determinado pelo Plenário (Acórdão 1.139/2022) para exercer controle concomitante sobre a implementação da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial (EBIA). O objetivo foi viabilizar contribuições tempestivas para um instrumento essencial ao desenvolvimento social, tecnológico e econômico do país.
O relator destacou que, no segundo semestre de 2023, houve intensa discussão legislativa sobre a regulação da Inteligência Artificial (IA), com destaque para o PL 21/2020, aprovado pela Câmara dos Deputados em 2021, e o PL 2.338/2023, apresentado pelo Presidente do Senado a partir do relatório final da Comissão de Juristas instituída para esse fim.
Conforme analisado, os debates sobre a regulação de IA “em nível internacional demonstram que diferentes escolhas regulatórias podem gerar impactos diretos, positivos ou negativos, sobre aspectos que vão da competitividade das empresas e da capacidade de geração de riquezas das nações à preservação da cidadania e da própria democracia”.
Assim, “faz-se necessário buscar soluções equilibradas, que assegurem a observância de aspectos fundamentais como ética, justiça e segurança, de modo a evitar danos e violações de direitos individuais e coletivos, ao mesmo tempo em que preservem a capacidade de inovação e desenvolvimento do mercado e do setor público. Tal desafio se revela ainda maior em face do ritmo exponencial de desenvolvimento das tecnologias de IA, com novos modelos e ferramentas que nos surpreendem a cada semana”.
“8. Em linhas gerais, a discussão mundial sobre o tema ocorre em torno de três abordagens conceituais distintas, baseadas no estabelecimento de princípios fundamentais, na identificação e classificação de riscos ou na preservação de direitos humanos e sociais.
9. Ainda que tais abordagens possam ser adotadas com diferentes nuances, ou até mesmo de forma combinada, pode-se dizer que quanto mais elevado o nível de detalhamento de critérios e procedimentos definidos na regulamentação, maiores tendem a ser os obstáculos à inovação e ao desenvolvimento habilitados por IA.
10. A fim de se aprofundar nesse debate e compreender melhor as implicações decorrentes de cada escolha, como subsídio à análise das propostas em discussão no Brasil, a equipe de auditoria analisou as iniciativas de regulação da União Europeia (AI Act, aprovado pelo Parlamento Europeu em dezembro de 2023), dos Estados Unidos (Ordem Executiva Presidencial, de outubro de 2023) e do Reino Unido (estratégia pró-inovação, de março de 2023).
11. Com base nesse benchmarking internacional e em estudos recentes sobre o tema, a equipe avaliou quatro Projetos de Lei em tramitação no Congresso Nacional, com foco na identificação de possíveis riscos decorrentes da eventual aprovação de tais matérias com suas redações atuais:
11.1. PL 21/2020 da Câmara dos Deputados, que cria o marco legal do desenvolvimento e uso de IA, com abordagem de caráter essencialmente principiológico;
11.2. PL 2.338/2023 do Senado Federal, que dispõe sobre normas gerais para o desenvolvimento, a implementação e o uso responsável de sistemas de IA, cuja estrutura combina as abordagens baseadas em riscos (inspirada no AI Act) e em direitos;
11.3. PL 4.025/2023 da Câmara dos Deputados, que dispõe sobre a utilização de imagens pessoais e sobre direitos autorais decorrentes do uso de IA, mediante alterações pontuais, porém significativas, no Código Civil e na Lei de Direitos Autorais (Lei 9.610/1998); e
11.4. PL 3.592/2023 do Senado Federal, que dispõe sobre o uso de imagens e áudios de pessoas falecidas por meio de IA.
12. Como resultado das análises empreendidas, foram identificados nove riscos decorrentes dessas propostas legislativas que podem impactar a capacidade de inovação de empresas e do setor público no Brasil, com consequências potencialmente negativas para o desenvolvimento social, tecnológico e econômico do país:
12.1. dependência de importação de tecnologia em decorrência da estagnação do desenvolvimento da IA no Brasil;
12.2. criação de barreiras para startups e empresas de menor porte;
12.3. perda de competitividade dos produtos e serviços brasileiros no comércio exterior;
12.4. monopólio ou oligopólio propiciado por regulação excessiva;
12.5. dificuldades na retenção de profissionais de IA;
12.6. definições genéricas impactando áreas desconexas e setores de baixa complexidade ou relevância;
12.7. impedimento ao desenvolvimento de IA por estabelecimento de direitos autoriais de forma incompatível à nova realidade;
12.8. limitação da capacidade de inovação nos setores público e privado; e
12.9. barreiras à transformação digital do Estado brasileiro e perda potencial de avanço na disponibilidade de mais e melhores serviços públicos aos cidadãos.
13. O relatório precedente apresenta, em detalhes, os aspectos considerados na identificação de cada um desses riscos, bem como sua associação com os eixos de atuação e objetivos da EBIA potencialmente afetados. Trata-se, a meu ver, de material de leitura obrigatória por todos que possuam interesses ou responsabilidades sobre o tema da regulação da inteligência artificial.
14. Por fim, com base nas constatações apresentadas, a equipe apresenta suas considerações finais, com o intuito de contribuir para a melhoria das propostas de regulação atualmente sob análise do Parlamento, cujo conteúdo endosso e passo a transcrever na íntegra, a fim de que recebam a merecida atenção:
Uma abordagem que estabeleça uma possibilidade de regulação flexível, iterativa e ágil, capaz de promover atuação tempestiva às rápidas evoluções da tecnologia, que incentive a inovação e uso de IA responsável, bem como o estudo e pesquisas para a mitigação de riscos, e que torne o sistema regulatório brasileiro capaz de aprender e se adaptar pode ser a melhor estratégia para o cenário atual.
A regulação excessiva e de forma prematura pode causar consequências graves e negativas, disseminadas em diversas áreas da economia. O cenário de IA evolui rapidamente e isso torna alto o risco de uma lei ficar obsoleta em pouco tempo, sem conseguir se adaptar e efetivamente regular a realidade.
O Brasil ainda não é um player relevante internacionalmente e é essencial que a regulação consiga acertar o equilibro entre a proteção de direitos e o incentivo à inovação de IA no país. Caso contrário, ao optar por estabelecer uma regulação antes de ter um mercado sólido e inserido na competição internacional, o país poderá sofrer gravosos impactos em diversas áreas, como perda de competição dos produtos brasileiros no cenário internacional, dependência tecnológica de IA estrangeira e perda de oportunidade de disponibilizar serviços à sociedade, inclusive os que se destinam a inclusão da população das pessoas mais vulneráveis.” (Destacamos.)
Fonte: TCU, Acórdão nº 616/2024, Rel. Min. Aroldo Cedraz, j. em 03.04.2024.