O art. 24, inc. XIV, da Lei nº 8.666/1993 dispensa a
licitação “para a aquisição de bens ou serviços nos termos de acordo
internacional específico aprovado pelo Congresso Nacional, quando as
condições ofertadas forem manifestamente vantajosas para o Poder Público”.
(Grifamos.)
Esse dispositivo relaciona-se com as disposições
constitucionais sobre soberania do Estado no estabelecimento de relações
jurídicas com organismos internacionais:
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional;
[…]
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: […]
VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional;
Com base na interpretação sistemática dessas disposições, é
possível entender que a incorporação de tratados no ordenamento jurídico
brasileiro requer a conjugação de vontade do Presidente da República e do
Congresso Nacional, a partir do que o acordo assumirá nível hierárquico de lei
ordinária.
Marçal Justen Filho sustenta que seria desnecessária a
inclusão da hipótese de dispensa do inc. XIV do art. 24 da Lei nº 8.666/1993,
uma vez que o tratado internacional referendado pelo Congresso Nacional teria
força de lei ordinária e, portanto, seria o bastante para justificar a
contratação direta nos moldes nele disciplinados:
Anote-se que, sob, um certo ângulo, seria desnecessária a existência do dispositivo ora enfocado. Os tratados internacionais, uma vez ratificados pelo Congresso Nacional, incorporam-se ao direito interno, em nível hierárquico idêntico ao das leis ordinárias. Logo, todos os tratados internacionais futuros que disciplinarem contratação direta seriam válidos. Reputar-se-ia ou que teriam revogado parcialmente a Lei 8.666/1993 ou que veiculariam disposições especiais, não atingidas por aquele diploma geral (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, art. 2º, § 2º). Mas a existência do dispositivo se justifica para eliminar qualquer dúvida inclusive quanto à vigência de regras especiais sobre contratações diretas contidas em tratados internacionais anteriores à vigência da Lei 8.666/1993. Seria possível um acordo internacional dispor, de modo genérico, acerca da dispensa de licitação para uma série indeterminada de contratações? A resposta, em princípio, é positiva. Como já visto, a hierarquia do tratado internacional é, no mínimo, idêntica à da lei ordinária. Logo, a introdução de regra geral no tratado internacional equivaleria a uma cláusula adotada na legislação ordinária. O problema residiria na compatibilidade da cláusula inscrita no tratado internacional com os princípios constitucionais. Haveria grande risco de infração aos princípios da República, da soberania nacional e da isonomia. (Grifamos.) (JUSTEN FILHO, 2016.)
Sobre o ponto, também são válidas as lições de Jorge Ulisses
Jacoby Fernandes:
Pelo dispositivo, na atualidade, em razão de acordo internacional, a Administração Pública poderá, ou deverá, segundo os termos do acordo, adquirir diretamente, sem prévio procedimento licitatório, bens e serviços normalmente produzidos no exterior, em detrimento do fornecedor nacional. A isonomia cederá espaço ao interesse nacional de intercâmbio entre nações, essencial no relacionamento dos povos. Imperativamente, reza o normativo que as condições oferecidas, para que seja válida a dispensa, deverão ser manifestamente vantajosas para o Poder Público. […] Em relação ao primeiro [requisito], insta ressaltar que algumas críticas têm sido formuladas ao inciso, com absoluta propriedade, podendo ser lembrada a do eminente Marcus Juruena que, comentando a redação anterior do dispositivo, obtempera: o próprio tratado, que no direito interno tem hierarquia de lei ordinária, poderia excepcionar a regra para o caso específico, sem necessidade de outra legislação, até porque o art. 4º da Constituição Federa já prevê a cooperação entre os povos e a integração econômica como princípios das relações internacionais brasileiras. […] Assim, frustrada parcialmente a ideia de sistematização de toda a legislação e, tendo em consideração como bem lembra o precitado autor, que o texto do acordo aprovado ingressa no ordenamento jurídico com força de lei ordinária, podendo consubstanciar-se em decreto legislativo, qualquer acordo poderá instituir novas hipóteses de contratação direta, validamente, se observados os preceitos constitucionais pertinentes. (JACOBY FERNANDES, 2016, p. 371-372.)
Joel de Menezes Niebuhr adota o mesmo racional ao afirmar
que,
a essa altura, que o acordo internacional, a que se refere o inciso XIV do artigo 24 da Lei nº 8.666/93, assume o status, no direito interno, de lei ordinária. Dessa sorte, se o acordo autoriza determinada contratação direta, ele é norma suficiente para criar, por si só, novo caso de dispensa, embora não se revista dos atributos da generalidade e da abstração. Nesses termos, nem seria necessário o inciso em comento para autorizar a dispensa, prevista especialmente em acordo internacional. (NIEBUHR, 2011, p. 299-300.)
Diante dessas considerações, é possível entender que a
omissão da Lei nº 13.303/2016 a respeito de hipótese de dispensa equivalente
àquela detalhada no inc. XIV do art. 24 da Lei nº 8.666/1993 não é suficiente
para impedir a contratação direta com base em acordos internacionais. Isso
porque, como visto, o acordo internacional referendado pelo Congresso Nacional
ingressa em nosso ordenamento como lei ordinária, o que se mostra suficiente
para motivar a contratação direta quando seus termos refletirem condições
vantajosas para a Administração.
A cautela que as estatais deverão ter é analisar
cautelosamente os contornos do acordo internacional, a fim de verificar se a
contratação direta nele especificada abrange a Administração Pública direta e
indireta. Sendo o caso, restará legitimada a dispensa de licitação, desde que
comprovada a vantajosidade da medida em detrimento da licitação.
Justamente por decorrer de premissas constitucionais,
entende-se possível que o regulamento interno de licitações e contratos das
estatais, editado em consonância com o art. 40 da Lei nº 13.303/2016, contemple
os critérios que deverão ser observados para a dispensa de licitação pautada em
acordos internacionais. Veja-se que não se trata da criação de nova hipótese de
dispensa, uma vez que isso somente seria admitido por lei; em última análise, a
estatal apenas estará disciplinando aspectos procedimentais relacionados à
aplicação de legislação que incide sobre sua atuação.
REFERÊNCIAS
JACOBY FERNANDES, Jorge Ulysses. Contratação direta
sem licitação. 10. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações
e contratos administrativos. 2. ed. e-book baseada na 17. ed. impressa. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. 14,1 Mb; PDF.
NIEBUHR, Joel de Menezes. Dispensa e inexigibilidade
de licitação pública. 3. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
Nota: O material acima foi originalmente
publicado na Revista Zênite – Informativo de Licitações e Contratos, na seção
Perguntas e Respostas, e está disponível no Zênite Fácil, ferramenta
que reúne todo o conteúdo produzido pela Zênite sobre contratação pública.
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