Larissa Mayer Pontes
18 de outubro de 2010
Prezado Luis Eduardo:
Inicialmente, agradecemos o comentário sobre o texto “Desenvolvimento de software: como garantir a qualidade?”.
A questão posta em discussão reveste-se efetivamente de muita polêmica, pois a exigência de certificado conflita com o posicionamento mais restritivo adotado atualmente pelos Tribunais quanto às exigências habilitatórias. De fato, não ignoramos que o posicionamento segundo o qual não é possível fazer qualquer exigência não prevista em Lei tende a ser mantido.
Porém, a proposta do comentário é justamente chamar a atenção para o problema gerado por essa interpretação restritiva do arcabouço legal e, ao mesmo tempo, propor uma releitura do tema sob outra ótica.
Diante da recorrente falta de satisfação do interesse público, derivada da interpretação restritiva e exclusivamente pautada a partir da letra da Lei nº 8.666/93, busca-se uma alternativa baseada em outros valores, dentre os quais aqueles previstos na Constituição Federal, especificamente no art. 37, inc. XXI [1].
Nesse sentido, a própria Constituição da República assegura que o procedimento licitatório permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. Quais são, então, diante do cenário atual, as exigências de qualificação técnica indispensáveis para garantir o cumprimento da obrigação? Apenas aquelas extraídas da literalidade do art. 30 da Lei nº 8.666/93? Inquirido de outro modo, a interpretação literal do art. 30 da Lei nº 8.666/93 tem sido suficiente para fixar exigências indispensáveis para garantir o cumprimento das obrigações?
A leitura que se propõe propugna a possibilidade de, no que toca à qualificação técnica, fazer tantas exigências quantas necessárias ao cumprimento da obrigação.
É verdade que as exigências de habilitação representam exercício de competência vinculada. No entanto, o exercício dessa competência se vincula exclusivamente à literalidade do art. 30 da Lei nº 8.666/93?
A proposta é justamente conferir uma interpretação menos literal e mais sistemática, preservando a finalidade da norma, sem perder de vista o objetivo constitucional, qual seja, fazer todas as exigências tidas como indispensáveis para assegurar o cumprimento da obrigação.
Para viabilizar essa interpretação, lembramos que as contratações da Administração devem, sempre que possível, “submeter-se às condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado” (art. 15, inciso III). Ainda que essa regra esteja prevista junto da disciplina dedicada a regulamentar as compras, sua inteligência consiste em verdadeira regra geral, devendo ser observada nas contratações dos demais objetos.
Daí porque, a conjugação dos dispositivos constitucional e legal faz concluir que, de acordo com a atual condição praticada no mercado privado, no qual a exigência de certificados consiste em meio eficaz e largamente empregado para assegurar o cumprimento das obrigações pela contratada (ou pelo menos forma forte presunção nesse sentido), a exigência de certificado de qualidade, além de não gerar restrição à competitividade, assegura de modo mais eficaz o cumprimento das obrigações.
Sendo assim, a proposta cogitada considera que, sem prejudicar a competitividade e assegurando condição mais favorável à satisfação do interesse público, mostra-se possível afastar o resultado da interpretação literal do art. 30 da Lei nº 8.666/93 e viabilizar interpretação que consagre a finalidade da Lei nº 8.666/93, qual seja, a preservação do interesse público.
Reconhecemos que a idéia formulada e postada nesse blog tende a receber resistência e oposição, pois nem sempre a inovação será aceita de forma simples e automática pela comunidade jurídica. Não obstante, o tema sugere um novo olhar, como reconhecido pelo próprio Tribunal de Contas da União, que passou a reavaliar a questão. É o que se depreende do Acórdão nº 1215/2009-Plenário, do qual se extraem os seguintes excertos:
“Nota Técnica 03. Em fase final de elaboração (fls. 29/56, Anexo 2)
22. A Nota Técnica 03 tratará da possibilidade de exigência, sob determinadas condições, da demonstração de qualidade de processo de software em contratações de serviços de desenvolvimento e manutenção de software.
23. Como disposto na Nota Técnica 2, vige atualmente a regra geral de contratação de bens e serviços de TI por meio da modalidade Pregão (do tipo "menor preço"), na medida em que tais aquisições geralmente apresentam padrões de desempenho e qualidade que podem ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado, conforme definido pela Lei 10.520/2002, art. 1º c/c Decreto 5.450/2005, art. 4º.
24. Considerando que os padrões de qualidade em serviços de desenvolvimento e manutenção de software, quando aferidos nos contratos privados, são usualmente descritos em termos do enquadramento dos processos de software adotados nos níveis de capacidade dos modelos CMMI ou MPS.BR, a Nota Técnica propõe que, também nas aquisições públicas de tais serviços, seria prudente adotar os mesmos mecanismos de exigência de demonstração de qualidade, com o objetivo de reduzir os riscos de frustração de resultados do contrato.
25. Porém, isto parece conflitar com posicionamentos frequentes do TCU no sentido de que em nenhuma hipótese se poderia exigir certificação de qualidade de processo (ou atestação semelhante) como critério de habilitação ou como requisito obrigatório na avaliação da proposta técnica (Acórdãos nos 1.937/2003, 539/2007, 1.890/2007, 2.521/2008 e 189/2009, todos do Plenário do TCU), sendo aceitável somente a sua pontuação em licitações do tipo "técnica e preço".
26. A Nota Técnica em elaboração pretende solucionar esse aparente conflito por meio de entendimentos que consideram, simultaneamente, os requisitos legais, as práticas usuais no mercado de serviços de desenvolvimento e manutenção de software, a regra geral de uso do Pregão para aquisição de serviços padronizados e a fundamentação dos entendimentos anteriores do TCU.
27. Além disso, diante da mudança da regra geral de licitação de serviços de TI, do tipo "técnica e preço" para o tipo "menor preço" pela modalidade Pregão, o corpo técnico do TCU carece de esclarecimentos sobre como avaliar a legalidade, a legitimidade e a economicidade da inserção de requisitos obrigatórios de qualidade de processo de software nas contratações de serviços de desenvolvimento e manutenção de software.
28. Os agentes públicos das áreas de TI, jurídica e administrativa, habituados aos posicionamentos do TCU em favor da impossibilidade de exigência de certificados ou de atestações de qualidade, carecem agora de orientação jurídica segura sobre a possibilidade de exigência de demonstração de qualidade mínima aceitável de processo de software nas contratações de serviços de desenvolvimento e manutenção de software, quando licitadas por Pregão.
29. Diante desse quadro, a Nota Técnica 3 terá por objetivo caracterizar, a partir de análises técnicas, legais e jurisprudenciais, que é possível exigir qualidade de processo de software em contratações de serviços de desenvolvimento e manutenção de sistemas.”
(Grifo nosso)
Além disso, registra-se que o próprio TCU, no ano de 2008, reconheceu a possibilidade de dar continuidade a certame que fez constar as exigências ora tratadas como condição de habilitação. Trata-se do Acórdão nº 1.172/2008-Plenário:
“Relatório
PARECER DA SEFTI
21. Considerando que a competitividade está assegurada por conta do número de empresas já certificadas em CMMI ou MPS-BR, além das que potencialmente podem apresentar certificação da Spice ou outra equivalente, e que a prática dessa exigência se coaduna com a realidade de mercado para contratos dessa natureza, entende-se ser razoável e pertinente a manutenção dessa exigência na habilitação.
22. Por fim, verifica-se que a exigência em questão consta tanto no edital, item 12.3.12 (fl. 45), quanto no Anexo I - Termo de Referência, item 9, d (fl. 57). Ocorre que as redações apresentam-se diferentes. No termo de referência consta: "Possuir certificação CMMI nível 2 ou superior, ou MPS-BR nível F ou superior, ou SPICE (ISO/IEC 15504) nível 2 ou superior ou equivalente;", ao passo que no edital não há referência aos níveis mínimos. Isso torna-se relevante para o MPS-BR, porque o seu nível mínimo certificável é o nível G, o que atenderia ao edital, mas não ao termo de referência. Considerando que o MPS-BR detém a maior parcela de empresas certificadas, isto pode ser potencialmente questionado por algum licitante. A redação do termo de referência apresenta-se mais precisa e é recomendável adotá-la no edital.
Acórdão
9.2. revogar a medida cautelar adotada, relativa aos Pregões Eletrônicos CAPES n.º 4, 5 e 6/2008, autorizando a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES a promover a continuidade dos aludidos procedimentos licitatórios, condicionada à implementação das seguintes providências:
(...)
9.2.2. alterar os termos do edital do Pregão Eletrônico n.º 6/2008, de modo a adequar a exigência de certificação CMMI ou MPS/BR ou Spice (ISO/IEC 15504) ou equivalente, desde que nos moldes do item 9, "d" do Anexo I - Termo de Referência, em face da maior clareza e especificidade;”
(Grifo nosso)
Como se vê, a exemplo de diversas outras situações tratadas pelo Direito, esse é um tema que desperta inúmeras possibilidades de entendimento, não havendo certo ou errado, mas raciocínios pautados em valores e razões diversas que podem conduzir a conclusões mais ou menos úteis. Ao que nos parece, a conclusão atualmente preponderante não tem conduzido a resultados úteis, sendo possível atestar essa afirmação a partir do elevado número de contratos de desenvolvimento de software desastrosos causando elevados prejuízos ao erário.
Daí porque, registramos mais uma vez nosso agradecimento pela sua manifestação e temos certeza que é justamente a partir da prática constante do debate que poderemos amadurecer os fundamentos jurídicos que contribuirão para garantir maior eficiência e melhores práticas para as contratações da Administração Pública brasileira.
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[1] Art. 37. (...)
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.