As idas e vindas do TCU sobre o dolo ou o erro grosseiro como pressuposto para a reparação por agentes públicos de dano ao erário  |  Blog da Zênite

As idas e vindas do TCU sobre o dolo ou o erro grosseiro como pressuposto para a reparação por agentes públicos de dano ao erário

Contratação PúblicaResponsabilidadeSanções Administrativas

O artigo 28 da LINDB, com as alterações promovidas pela Lei nº 13.655/2018, limita a responsabilidade de agentes públicos aos casos de dolo ou de erro grosseiro. O Plenário do Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 2.391/2018, da relatoria do Ministro Benjamin Zymler, firmou o entendimento equivocado que a LINDB não poderia limitar a responsabilidade de agente público de reparar dano ao erário às hipóteses em que configurado dolo ou erro grosseiro. Para a Corte de Contas, o agente público que age sem dolo ou erro grosseiro se livra de penalidades administrativas, como multa e suspensão de direitos, mas não do dever de reparar dano ao erário. O argumento dos Ministros é que o § 6º do artigo 37 da Constituição Federal prescreve que a obrigação de reparação de dano ao erário depende apenas da culpabilidade do agente público, não importando o grau de culpa. Daí que qualquer grau de culpa, mesmo longe de configurar dolo ou erro grosseiro, é o bastante para fazer com que agente público seja obrigado a reparar dano ao erário.[1]

Essa tese do Tribunal de Contas da União acaba desidratando em muito o artigo 28 da LINDB. Ora, a medida de responsabilização de agentes públicos mais significativa é a reparação de dano ao erário; as demais sanções acabam sendo secundárias. Veja-se que, no caso do Acórdão nº 2.391/2018, discutiu-se a responsabilidade de um ex-diretor da Funasa, acusado de negligência em relação aos procedimentos de liquidação de despesa. Reconheceu-se que não se tratava de dolo ou erro grosseiro, o que o eximiu da multa. Contudo, ele foi condenado ao ressarcimento do valor supostamente liquidado de forma indevida. No fim, o ex-diretor não escapou da condenação, justamente da parte mais pesada, que corresponde à reparação do dano ao erário.

O argumento do Tribunal de Contas da União pode ser refutado por, pelo menos, duas razões. A primeira é que o legislador infraconstitucional pode perfeitamente estabelecer balizas para a aplicação das normas constitucionais, inclusive distinguindo graus de culpa para a responsabilização de agentes públicos.[2] Note-se que o próprio legislador infraconstitucional limitou a responsabilidade de magistrados, membros do Ministério Público e ministros de tribunais de contas, que também são agentes públicos, a casos de dolo ou fraude (inciso I do artigo 143 e artigo 181, ambos do CPC, e artigo 73 da Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União), curiosamente sem notícias de arguição de inconstitucionalidade por parte do aparato de controle. A segunda razão é que o §6º do artigo 37 da Constituição Federal trata, literalmente, da responsabilidade de agentes públicos diante de danos causados a terceiros e não à própria Administração Pública (erário).[3] Por consequência, o §6º do artigo 37 não poderia ser utilizado como fundamento para qualificar como inconstitucional a condição de dolo ou de erro grosseiro para a obrigação de reparar o dano causado à Administração Pública (erário).

A polêmica bateu às portas do Supremo Tribunal Federal, que, na ADIN 6.421/DF, sob a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, reconheceu a constitucionalidade do artigo 28 da LINDB, sob o argumento de que:

“O art. 37, § 6º, da CF não impõe um dever absoluto de responsabilidade em caso de qualquer espécie de culpa. É competência do legislador ordinário dimensionar adequadamente a culpa juridicamente relevante para fins da responsabilidade civil regressiva do agente público.” [4]

Você também pode gostar

O Supremo opôs-se ao Tribunal de Contas da União e decidiu, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, que o agente público que não atua com dolo ou com erro grosseiro não deve reparar dano ao erário.

Meses depois do julgamento do Supremo Tribunal Federal, o Plenário do Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 1.835/2024, da Relatoria do Ministro Benjamin Zymler, decidiu, por maioria, atenuar a responsabilização de agentes públicos por danos causados ao erário.[5] O Tribunal, nessa oportunidade, não fez sequer referência ao julgado do Supremo e não alterou o entendimento de que a responsabilização de agentes públicos por danos causados ao erário não depende da configuração do dolo ou do erro grosseiro e que qualquer grau de culpa é o suficiente para a condenação à reparação de dano ao erário — embora o Ministro Relator tenha sinalizado a possibilidade da revisão desse entendimento. Sem embargo disso, o Tribunal aplicou o parágrafo único do artigo 944 do Código Civil, cujo teor prescreve que, “se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização”. O Acórdão envolve caso de corrupção ocorrida na Petrobras, com a participação de empresas que atuaram em cartel, diversos agentes da Estatal e o seu Presidente, que teria sido omisso. Diante dos fatos, decidiu por distinguir o montante da indenização devida pelo Presidente dos demais envolvidos nos fatos que geraram dano ao erário. Considerou que a culpabilidade do Presidente, apesar de grave, seria substancialmente diferente da dos demais envolvidos, sobretudo porque não houve prova de que ele participou diretamente dos atos de corrupção ou recebeu vantagens indevidas. Em síntese, o Tribunal entendeu que, havendo solidariedade entre diversos responsáveis, o valor das indenizações devidas por cada um deles pode ser diferenciado, reduzindo-se proporcionalmente em razão do grau de culpa.

Mais adiante, o Plenário do Tribunal de Contas da União, no Acórdão nº 886/2025, também por maioria, novamente sem mencionar o julgamento do Supremo Tribunal Federal, em voto divergente do revisor Ministro Bruno Dantas, resolveu por eximir gestores públicos de reparar dano ao erário, dado que não haviam incorrido em dolo ou erro grosseiro. Tratava-se de caso sobre a compra de ventiladores pulmonares pelo Consórcio Nordeste durante a pandemia de COVID-19, com previsão de pagamento antecipado. Para o Ministro Relator, diante da excepcionalidade da pandemia, não se poderia exigir dos agentes públicos conduta diversa e que eles não deveriam ser condenados a reparar o dano ao erário decorrente do malogro contratual. O mesmo raciocínio foi aplicado no Acórdão nº 1.460/2025, também do Plenário, da relatoria do Ministro Bruno Dantas, em sede de recurso contra Acórdão da Segunda Câmara que versava sobre a obrigação de Prefeito de reparar dano ao erário causado por sobrepreço havido em contrato, cuja detecção dependeria de elementos técnicos atinentes à análise de planilha de composição de preços.[6]

Os julgados supracitados representam compreensão radicalmente diversa da que fora até então pacificada pelo Tribunal de Contas da União desde o Acórdão nº 2.391/2018. Chama a atenção que o Ministro Bruno Dantas, que lidera essa nova corrente, não se refere em seus votos ao julgamento da ADIN 6.421/DF, do Supremo Tribunal Federal, nem ao §6º do artigo 37 da Constituição Federal, que seria o fundamento, até então pacificado, para condenar agentes públicos que não agiram com dolo ou erro grosseiro à reparação de dano ao erário. Na visão do Ministro Bruno Dantas, quem deve reparar o dano é quem se apropriou dele e não quem lhe deu causa. Essa compreensão é equivocada, subverte a regra básica do artigo 927 do Código Civil, segundo a qual quem causa o dano tem a obrigação de repará-lo. A conclusão do Ministro está correta, o fundamento não. O fundamento correto, reconhecido pelo Supremo, é que o artigo 28 da LINDB é constitucional ao condicionar a responsabilização de agentes públicos ao dolo e ao erro grosseiro, inclusive para reparar dano ao erário. Afora isso, seria bem mais fácil se alinhar ao Supremo.

De todo modo, essa nova compreensão do Tribunal de Contas da União, liderada pelo Ministro Bruno Dantas, não se pacificou. A Segunda Câmara do Tribunal, no Acórdão nº 5.284/2025, da relatoria do Ministro Augusto Nardes, permanece sustentando, equivocadamente, que a reparação de dano ao erário não depende da configuração do dolo ou do erro grosseiro.[7]

Para além da divergência, é muito estranho que os acórdãos do Tribunal de Contas da União, de todos os lados, desprezem olimpicamente o julgamento da ADIN 6.421/DF, do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a constitucionalidade do artigo 28 da LINDB em relação à reparação de dano ao erário. É como se o Supremo não existisse ou como se a Corte de Contas não precisasse se conformar ao decidido em controle concentrado de constitucionalidade. A insegurança jurídica é extremada, notadamente em tema tão sensível para a Administração Pública e para os órgãos de controle, que envolve o nervo central da responsabilização de agentes públicos. Não é à toa que as canetas da Administração Pública permanecem apagadas.

 

[1] TCU, Plenário. Acórdão nº 2.391/2018, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 17.10.2018.

[2] Esse argumento, em linhas gerais, foi apresentado pelo Professor Clóvis Beznos, no XV Congresso Goiano de Direito Administrativo.

[3] FERRAZ, Luciano. Alteração na LINDB e seus reflexos sobre a responsabilidade dos agentes públicos. Conjur, 29 nov. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-29/interesse-publico-lindb-questao-erro-grosseiro-decisao-tcu. Acesso em: 03 ago. 2021.

[4] STF, Plenário. ADIN 6.421/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 11.03.2024.

[5] TCU, Plenário. Acórdão nº 1.835/2024, Rel. Min. Benjamin Zymler, j. 04.09.2024.

[6] TCU, Plenário. Acórdão nº 1.460/2025, Rel. Min. Bruno Dantas, j. 2.7.2025.

[7] TCU, Segunda Câmara. Acórdão nº 5.284/2025. Rel. Min. Augusto Nardes, j. 2.9.2025.

 

As publicações disponibilizadas neste Blog são protegidas por direitos autorais. A reprodução, utilização ou qualquer forma de aproveitamento do conteúdo deve obrigatoriamente conter a devida citação da fonte, conforme previsto na legislação de direitos autorais (Lei nº 9.610/1998).

Como citar o conteúdo do Blog Zênite:
NIEBUHR, Joel de Menezes. As idas e vindas do Tribunal de Contas da União sobre o dolo ou o erro grosseiro como pressuposto para a reparação por agentes públicos de dano ao erário. Blog Zênite. 18 nov. 2025. Disponível em: https://zenite.blog.br/as-idas-e-vindas-do-tcu-sobre-o-dolo-ou-o-erro-grosseiro-como-pressuposto-para-a-reparacao-por-agentes-publicos-de-dano-ao-erario/. Acesso em: dd mmm. aaaa.

 

Os artigos e pareceres assinados são de responsabilidade de seus respectivos autores, inclusive no que diz respeito à origem do conteúdo, não refletindo necessariamente a orientação adotada pela Zênite.

Gostaria de ter seu trabalho publicado no Zênite Fácil e no Blog da Zênite? Então encaminhe seu artigo doutrinário para editora@zenite.com.br, observando as seguintes diretrizes editoriais.

Continua depois da publicidade
Seja o primeiro a comentar
Utilize sua conta no Facebook ou Google para comentar Google

Assine nossa newsletter e junte-se aos nossos mais de 100 mil leitores

Clique aqui para assinar gratuitamente

Ao informar seus dados, você concorda com nossa política de privacidade

Você também pode gostar

Continua depois da publicidade

Colunas & Autores

Conheça todos os autores
Conversar com o suporte Zênite