Aprendemos, nas faculdades de Direito e nos livros de hermenêutica e interpretação jurídica, que a “lei” (enunciado) não tem palavras inúteis. Com isso, pretende-se dizer que todas as palavras que compõem um enunciado normativo, sem exceção, têm conteúdo e não podem ser ignoradas.
No entanto, tal afirmativa não é adequada, pois a ordem jurídica tem inúmeros exemplos de enunciados que possuem palavras inúteis, isto é, que não servem para nada; que não tem conteúdo próprio; que podem e devem ser ignoradas pelo intérprete.
Um exemplo de inutilidade prescritiva é a expressão “ou outra equivalente, na forma da lei”, prevista no inc. III do art. 29 da Lei nº 8.666/93. Vejamos o enunciado como um todo:
“Art. 29. A documentação relativa à regularidade fiscal, conforme o caso, consistirá em:
(…)
III – prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei”. (Destaquei.)
A expressão “ou outra equivalente, na forma da lei” não deveria fazer parte do enunciado; não deveria estar onde está. Na verdade, tal expressão não significa nada. Vamos explicar melhor.
Para entender porque afirmamos que tal expressão não deveria estar no inc. III do art. 29, é preciso voltar um pouco no tempo e saber como tal expressão foi introduzida na ordem jurídica. Assim, voltaremos ao dia 21 de novembro de 1986, data em que entrou em vigor o Decreto nº 2.300, que regulamentou as licitações e os contratos até a entrada em vigor da Lei nº 8.666/93.
A redação original do Decreto-Lei nº 2.300/86, no item 2 do § 4º do seu art. 25, dizia que a documentação relativa à regularidade consistiria em “prova de quitação com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal.” A disciplina dada pelo referido ato normativo era inadequada, uma vez que impedia os licitantes possuidores de certidão positiva com efeito de negativa, por exemplo, de participar da licitação, pois “prova de quitação” pressupõe inexistência de quaisquer débitos perante o fisco.
Essa situação criada pela redação do item 2 do § 4º do seu art. 25 do Decreto-lei 2.300/86 gerou, na época, todo o tipo de protestos, o que obrigou a União a emendar a redação do enunciado. Por essa e outras razões, foi editado o Decreto-lei nº 2.348, em 24 de julho de 1987, ou seja, oito meses após a aprovação do Decreto-lei nº 2.300. Em razão da emenda, a redação do item 2 do § 4º do seu art. 25 do Decreto-lei nº 2.300/86 ficou assim: “prova de quitação com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal ou outra equivalente, na forma da lei” .
Portanto, a expressão “ou outra equivalente na forma da lei” foi introduzida na legislação relativa à contratação pública para complementar a ideia de “prova de quitação”, pois esta restringia a competição na medida em que impedia interessados em situação de regularidade, embora devedores do fisco, de participar das licitações. Com essa medida, foram prestigiadas duas coisas: a legalidade e a ampliação justificada da competição.
Posteriormente, tanto a doutrina quanto os tribunais consolidaram a ideia de “regularidade fiscal” como a situação de quem é detentor de certidão negativa (ou seja, exibe “prova de quitação”), bem como, embora na condição de devedor, possui certidão positiva com efeito de negativa, o que ocorre quando a dívida é parcelada ou garantida.
Com a edição da Lei nº 8.666/93, a situação foi definitivamente resolvida, pois, ao regular a questão, a expressão utilizada foi “prova de regularidade para com a fazenda Federal, Estadual e Municipal (…)”, o que seria suficiente, uma vez que a expressão “prova de regularidade” abrange tanto a “prova de quitação” quanto “ou outra equivalente, na forma da lei”. No entanto, quem elaborou a redação do inc. III do art. 29 da Lei nº 8.666/93 não se deu conta disso e, ao incluir no referido enunciado a expressão “ou outra equivalente, na forma da lei”, fez “chover no molhado”, expressão popular que sintetiza bem a inutilidade da expressão referida.
Portanto, a expressão “ou outra equivalente, na forma da lei” não tem nenhum sentido próprio no contexto do inc. III do art. 29 da Lei nº 8.666/93, porque o seu conteúdo já está definido na expressão “prova de regularidade”.
Há aqui um bom exemplo de que a “lei” tem sim palavras inúteis.
Com isso explica-se também a origem, a razão e o conteúdo do inc. III do art. 29 da Lei nº 8.666/93.