A grande dúvida que nasce com a Lei nº 13.303/16 é a seguinte: o novo regime jurídico já está em vigor ou sua vigência somente terá início daqui a 24 meses? Parece incrível que uma lei já nasça com uma dúvida dessa natureza, principalmente quando houve grande empenho do Governo para sua rápida aprovação. Todo esse empenho não condiz com a possibilidade de o novo regime somente produzir efeitos daqui a 2 anos.
Não parece lógico haver esforço para aprovar uma lei, que tramitou em regime de urgência, para agora ficar na gaveta por 24 meses. Para termos uma ideia de como a hipótese é absurda, o novo Código Civil Brasileiro e o novo Código de Processo Civil tiveram vacância de apenas 1 ano, e são duas normas extremamente impactantes para a vida de pessoas, juízes, advogados, entidades e sociedades empresárias, além de serem regimes jurídicos que introduziram significativas alterações materiais nos diplomas até então vigentes. Não é razoável aceitar a ideia, que tem sido cogitada, de que a Lei nº 13.303/16 possa ter vacância de 2 anos, pois isso seria algo sem precedentes.
Ademais, é incoerente submeter um projeto de lei ao regime de urgência se ele não atender a, pelo menos, uma de duas condições: a) entrar em vigor na data de sua publicação ou b) entrar em vigor em curto prazo, isto é, em um prazo mínimo capaz apenas de possibilitar que seus destinatários conheçam o conteúdo das novas disposições. Fixar prazo longo para que uma lei comece a produzir seus efeitos, notadamente quando sua tramitação atropelou as formalidades regimentais ordinárias do Senado Federal, como foi o caso, é um completo disparate. Evidentemente, a única possibilidade razoável é a de que ela, de fato e de direito, já esteja em vigor, ou seja, como seu próprio art. 97 indica: “Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação”.
Ora, se está dito, no art. 97 da citada Lei, que ela entrará em vigor na data de sua publicação, tendo sido publicada no Diário Oficial da União em 1º.07.16, por que ainda há dúvidas em relação à sua vigência?
No que diz respeito à contratação pública, a dúvida decorre do teor do § 3º do art. 91:
Art. 91. A empresa pública e a sociedade de economia mista constituídas anteriormente à vigência desta Lei deverão, no prazo de 24 (vinte e quatro) meses, promover as adaptações necessárias à adequação ao disposto nesta Lei.
§ 1º A sociedade de economia mista que tiver capital fechado na data de entrada em vigor desta Lei poderá, observado o prazo estabelecido no caput, ser transformada em empresa pública, mediante resgate, pela empresa, da totalidade das ações de titularidade de acionistas privados, com base no valor de patrimônio líquido constante do último balanço aprovado pela assembleia-geral.
§ 2º (VETADO).
§ 3º Permanecem regidos pela legislação anterior procedimentos licitatórios e contratos iniciados ou celebrados até o final do prazo previsto no caput. (Destacamos)
O dispositivo legal do § 3º do art. 91 pode ensejar duas compreensões absolutamente distintas entre si. O referido enunciado faz menção ao prazo previsto no caput do art. 91, ou seja, ao prazo de 24 meses, o que suscitou, inicialmente, a impressão de que ele estaria instituindo um prazo tipicamente de vacância, segundo o qual a nova Lei somente entraria em vigor após 24 meses, permanecendo a anterior a regular fatos e relações até o advento final do aludido prazo. Essa é, no entanto, uma compreensão equivocada, apesar de ter acometido grande parte dos intérpretes. Registro, aqui, que o amigo e jurista Egon Bockmann Moreira, já no dia 04.07.16, no Jornal Gazeta do Povo, havia registrado o entendimento de que a Lei nº 13.303/16 já estava em vigor.
Vejamos, no entanto, as duas possibilidades que o § 3º do art. 91 é capaz de proporcionar aos diferentes intérpretes, a fim de compreender adequadamente a razão da dúvida.
A primeira possibilidade do intérprete é entender que as licitações que forem iniciadas e os contratos que vierem a ser celebrados nos próximos 24 meses, a contar de 1º de julho de 2016, estarão sujeitos à legislação anterior, ou seja, à que era adotada pelas empresas públicas e sociedades de economia mista e suas subsidiárias antes da publicação da Lei nº 13.303/16. Tal entendimento implicaria reconhecer uma vacância de 24 meses para a Lei nº 13.303/16, o que, conforme ponderamos antes, é simplesmente um absurdo, algo inaceitável sob o ponto de vista lógico. Essa interpretação aliada à ideia de tramitação urgente que norteou a aprovação da referida Lei, bem como ao fato de que nem o Código Civil nem o CPC tiveram tal vacância e que o art. 97 da Lei nº 13.303/16 proclama que ela já está em vigor, sem prever nenhuma outra condição, levam ao entendimento de que não há lógica que sustente a vacância de 24 meses, ainda que a literalidade do enunciado do § 3º do art. 91 pareça indicar isso.
A segunda possibilidade é o intérprete entender que a racionalidade lógica que se pode extrair da enunciação prevista no § 3º do art. 91 é a de que as licitações que já foram lançadas ou os contratos já celebrados até 30.06.16 permanecerão regidos pela legislação anterior até o final do prazo previsto no caput do art. 91, ou seja, pelos próximos 24 meses. Sob esse ângulo, a lógica que preside a prescrição legal decorreria de duas razões.
Uma das razões é que não haveria justificativa para determinar que todas as licitações já lançadas e com edital publicado fossem anuladas e refeitas de acordo com a nova Lei, pois isso criaria inúmeros problemas operacionais desnecessários. A segunda razão é que os contratos de obras, serviços de engenharia e serviços continuados já celebrados e em execução devem permanecer incólumes à nova Lei, pois devem ser regidos pela lei do tempo em que foram constituídos. Assim, até o final do prazo de 24 meses, ou eles estariam extintos em razão do término de seus prazos; ou encerrados por outras razões; ou, ainda, deveriam ser readaptados à nova Lei, sob pena de impossibilidade de prorrogação. Com isso, não haveria impacto sobre licitações já lançadas e relações contratuais já constituídas. Referida interpretação é a que melhor se revela conforme os contextos político e jurídico nos quais a Lei nº 13.303/16 foi produzida.
Portanto, esse entendimento implicaria reconhecer que todas as licitações que tiveram seus editais publicados a partir de 1º.07.16 devem observar a Lei nº 13.303/16, ou seja, a observância da legislação anterior para os 24 meses abarcaria apenas as licitações já lançadas e os contratos já celebrados até 30.06.16. Vale dizer, a Lei nº 13.303 está em vigor desde o dia 1º.07.16 e deve ser aplicada pelos seus destinatários.
Por outro lado, a primeira tese acima, ou seja, a ideia de que a Lei nº 13.303/16 teria uma vacância de 24 meses, poderia ser reforçada pelo fato de que o Relator, Sen. Tasso Jereissati, ao elaborar seu parecer, opinou pela rejeição do Substitutivo da Câmara dos Deputados nº 3/16, no qual havia sido previsto que a disciplina relativa a licitações e contratos (arts. 28 a 84) somente deveria ser observada 180 dias após a publicação da Lei.
Isso quer dizer que a Câmara dos Deputados entendeu que seria adequada uma vacância de 180 dias e, em atenção ao exigido pela Lei Complementar nº 95/98, a qual fixa normas sobre a elaboração, redação, alteração, consolidação e, inclusive, dispõe sobre vigência das leis, sugeriu que o texto aprovado no Senado fosse substituído por outro, o qual cumpria as exigências do art. 8º da citada LC nº 95/98, o qual prescreve o seguinte:
Art. 8º A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula “entra em vigor na data de sua publicação” para as leis de pequena repercussão.
§ 1º A contagem do prazo para entrada em vigor das leis que estabeleçam período de vacância far-se-á com a inclusão da data da publicação e do último dia do prazo, entrando em vigor no dia subseqüente à sua consumação integral.
§ 2º As leis que estabeleçam período de vacância deverão utilizar a cláusula “esta lei entra em vigor após decorridos (o número de) dias de sua publicação oficial”.
Nesse contexto, se dada lei vai observar algum período de vacância, seja qual for ele, é preciso que seja definido claramente, pois, do contrário, a conclusão é a de que a Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Vale dizer que o Substitutivo da Câmara, no tocante à vigência da nova Lei, adequou a redação do art. 98 do projeto aprovado no Senado aos termos da Lei Complementar nº 95/98, uma vez que esta determina que, se for definido algum prazo de vacância, ele deve estar indicado expressamente, de modo a não deixar dúvidas; se houver dúvidas e a cláusula adotada for: “Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação”, ela não terá nenhuma vacância. É a regra do jogo que decorre de Lei Complementar. Portanto, tal condição norteia o processo de produção das leis e deveria ter sido observada por quem a aprovou, no caso, o Senado. Aqui é importante perceber que a Câmara dos Deputados nem cogitou de que havia qualquer prazo de vacância fixado, como talvez tenha imaginado o Relator no Senado.
O Substitutivo da Câmara também reconheceu que, por não haver vacância definida legalmente, seria preciso fixar um prazo para que os destinatários (empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias) se adaptassem às novas disposições. Nesse sentido, ficou claro que os deputados, por força do que exige a LC nº 95/98, entenderam que o prazo do art. 91 tinha conteúdo programático e intertemporal, mas não constituía prazo de vacância, pois esse prazo deveria estar indicado, obrigatoriamente, no art. 98 do projeto aprovado no Senado[1]. Nesse particular, houve uma confusão no Senado, a qual suscitou a dúvida que atingiu os integrantes de empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias.
É importante notar que todas as leis editadas cumprem rigorosamente o que determina a LC nº 95/98, o que nem poderia ser diferente, pois ela regula a matéria. Assim, basta observar alguns exemplos:
a) O Código Civil, em seu art. 2.044, prescreve: “Este Código entrará em vigor 1 (um) ano após a sua publicação”.
b) O novo Código de Processo Civil, em seu art. 1.045, determina: “Este Código entra em vigor após decorrido 1 (um) ano da data de sua publicação oficial”.
c) A LC nº 123, em seu art. 88, prescreve: “Esta Lei Complementar entra em vigor na data de sua publicação, ressalvado o regime de tributação das microempresas e empresas de pequeno porte, que entra em vigor em 1o de julho de 2007”.
d) A Lei nº 12.846/13 (Lei Anticorrupção), em seu art. 31, estabelece: “Esta Lei entra em vigor 180 (cento e oitenta) dias após a data de sua publicação”.
e) Assim ocorre também com a Lei nº 8.666/93, a Lei nº 10.520/02, etc.
É fácil perceber que há uma condição legal que deve ser observada para a fixação da vacância e tal condição não foi percebida pelo Relator no Senado. No entanto, curiosamente, no texto do relatório de seu parecer final, ele qualifica o substitutivo da Câmara, no que diz respeito à vigência das disposições previstas nos arts. 28 a 84, com as seguintes palavras: “Por fim, o substitutivo modifica, no art. 98, a cláusula de vigência, com a finalidade de postergar em 180 dias a entrada em vigor dos dispositivos da futura lei que tratam das licitações e contratos das empresas estatais”. (Destacamos)
Chamamos a atenção para a expressão: “com a finalidade de postergar em 180 dias a entrada em vigor da futura lei que tratam das licitações e contratos das empresas estatais”. Ora, o verbo “postergar” significa adiar, atrasar, protelar, o que revela que o Relator pretendia que a Lei, no tocante a licitações e contratos, entrasse logo em vigor, e não em 180 dias, como pretendia o Substitutivo da Câmara dos Deputados. No entanto, no item II do parecer, na parte relativa à análise do Substitutivo, de forma absolutamente contraditória, o Relator afirma: “Sou igualmente contrário à modificação que reduz o prazo de adaptação das empresas aos comandos dos capítulos de licitações e contratos para 180 dias, conforme propõe o texto da Câmara. Penso seja mais adequado que o prazo para adequações procedimentais seja de até 24 meses, como consta do texto aprovado pelo Senado”.
As duas afirmações do Relator revelam uma contradição absoluta, pois, em um primeiro momento, ele se opõe à proposta da Câmara por entender que o prazo de vacância sugerido de 180 dias adiaria a entrada em vigor da nova Lei, o que, imagino, por não se coadunar com a ideia de tramitação em regime de urgência, conforme o próprio Relator reconhece, no início do seu parecer, ao confirmar que o projeto tramitou em regime de urgência no Senado (fl. 1). Mas, em um segundo momento, para sugerir a rejeição da vacância proposta pela Câmara, ele argumenta que haveria a redução do prazo de adaptação e adequações procedimentais. Também é curioso o fato de que o Relator, ao se reportar aos 24 meses, não usa a expressão “prazo de vigência”, apenas “prazo de adaptações” e “adequações procedimentais”, o que sugere que ele pudesse estar, em verdade, tratando de duas coisas distintas, a saber: a) pretendendo que a Lei entrasse em vigor imediatamente, a fim de, inclusive, justificar a urgência da tramitação e b) sugerindo que, apesar de entrar em vigor imediatamente, fosse dado prazo às entidades para adaptar os contratos em vigor. Diante do cenário político e jurídico que norteou a edição da nova Lei, parece ser essa a explicação mais razoável para conciliar referida contradição.
No entanto, uma análise mais cuidadosa e juridicamente aprofundada do § 3º do art. 91 é capaz de revelar que o período nele indicado, de 24 meses, não é prazo de vacância, mas sim define uma regra típica de direito intertemporal, e uma coisa não se confunde com a outra. Assim, devemos perceber que, no cenário em que uma nova lei é inserida, é preciso regular, basicamente, duas situações distintas: a) as anteriores à publicação e a vigência da nova Lei, nesse caso, licitações iniciadas e contratos celebrados até 30.06.16 e b) os fatos e as relações que serão constituídas a partir da entrada em vigor da nova Lei, nesse caso, 1º.07.16. Vale aqui a máxima consagrada de que as situações anteriores à vigência da lei nova regulam-se não por ela, mas sim pela lei vigente ao tempo em que foram praticados os atos e constituídas as relações.
O art. 91 e o art. 97 cumprem funções distintas, ou seja, regulam esses diferentes mundos. Basicamente, a finalidade do § 3º do art. 91 é dizer que a legislação anterior continuará a ter vigência em relação a licitações já iniciadas e contratos já celebrados por, no máximo, mais 24 meses. No entanto, novas licitações e novos contratos devem ser regulados pela nova Lei, ou seja, pela Lei nº 13.303/16, não se aplicando mais leis anteriores.
É lamentável que tenha havido uma dúvida dessa natureza; obviamente, essa confusão poderia ter sido evitada. No entanto, é preciso lembrar que a interpretação jurídica é capaz de resolver qualquer problema, por mais difícil que ele possa parecer em um primeiro momento. Porém, é preciso reconhecer que essa não era uma dúvida que deveria surgir, neste momento, para todos aqueles que têm de planejar licitações e contratos nas empresas estatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e subsidiárias) de todo o país. A questão poderia girar em torno de como eles deveriam aplicar o novo regime jurídico imediatamente.
Enfim, não resta mais nenhuma dúvida, para mim, de que a Lei nº 13.303/16 está em vigor e deve ser aplicada pelas empresas públicas e sociedades de economia mista e suas subsidiárias, pois ela não foi editada com prazo de vacância, mas sim com regra de direito intertemporal a ser observada apenas para licitações iniciadas e contratos celebrados até 30.06.16. As licitações cujo edital foi publicado a partir, inclusive, de 1º.07.16 e os contratos firmados a partir, inclusive, da mesma data devem observar a Lei nº 13.303/16, especialmente os arts. 28 a 84, os quais regulam o processo de contratação pública.
Por fim, a redação do § 3º do art. 91 da Lei nº 13.303/16 nos ensina que é bom lembrar da sempre atual advertência do Prof. Carlos Maximiliano: “as palavras são um péssimo veículo do pensamento”.
[1] Atualmente o conteúdo do art. 98 do Projeto aprovado no Senado é o art. 97 da Lei nº 13.303/16.