Aplicação da Lei nº 14.133/2021 depende da edição de novos Regulamentos?

Nova Lei de Licitações

A nova Lei de Licitações nº 14.133/2021 prevê expressões como regulamento, regulamentação, ato do Poder, ato normativo/ato, num total de 53 vezes.    

A questão que fica: em todas essas referências é possível concluir que a Lei ainda não é aplicável, compreendendo, desse modo, normas de eficácia limitada? A resposta, no entendimento da Zênite, é negativa. 

Sobre a aplicabilidade das normas, José Afonso da Silva comenta que, “uma norma só é aplicável plenamente, se estiver aparelhada para incidir, o que suscita várias questões, além da interpretação, como: estará em vigor; será válida ou legítima; é apta para produzir os efeitos pretendidos, ou precisará de outras normas que lhe desenvolvam o sentido, em outras palavras, tem, ou não tem, eficácia? Se a norma não dispõe de todos os requisitos para sua aplicação aos casos concretos, falta-lhe eficácia, não dispõe de aplicabilidade. Esta se revela, assim, como possibilidade de aplicação. Para que haja essa possibilidade, a norma há que ser capaz de produzir efeitos jurídicos.” (AFONSO DA SILVA, José. Aplicabilidade das normas constitucionais. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 41 e 50.)  

Na Lei nº 14.133/2021 há normas que, apesar de vigentes e válidas, não têm eficácia. Ou seja, sua aplicação pressupõe prévia atividade regulamentar ou normativa (são normas de eficácia limitada). Outras, no entanto, são vigentes, válidas e plenamente aplicáveis/eficazes. Em outros termos, há normas na nova Lei de Licitações que estão aparelhadas para plena aplicação.  

Para fundamentar juridicamente essa conclusão partiremos de algumas premissas interpretativas.

Você também pode gostar

Conforme o art. 2º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), “Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.” Ainda: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior” (parágrafo 1º); e “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior” (parágrafo 2º). 

Logo, a lei nova (a exemplo do que ocorre com uma mudança constitucional) recepciona a normatividade legal e infralegal anterior desde que: (i) não tenha sido expressamente revogada; (ii) seja compatível com o novo regime legal; (iii) não tenha sido objeto de total regulação pela nova lei. Observados esses elementos, temos aqui a aplicação da chamada “teoria da recepção”, comumente citada em análises envolvendo normas constitucionais, mas que não se restringem a elas.

Portanto, se a lei anterior ou, mesmo, uma norma infralegal anterior (decreto, instrução normativa, ou outro) é compatível materialmente com a lei nova; não adota “rótulo normativo” (decreto, instrução normativa ou outro) incompatível com a nova lei (de modo que teria rito diferente de elaboração/aprovação); e, ainda, a aplicação pertinente não gera conflito de competência à luz da nova lei (insuscetível de validação pela autoridade indicada na nova lei), então essa normatização legal/infralegal anterior foi recepcionada. 

É essa análise que se exigirá relativamente a cada ponto indicado na nova Lei de Licitações, como sujeito à regulamentação/edição de ato.  

Vejamos alguns exemplos.  

O art. 23, parágrafo 1º, da Lei nº 14.133/2021 pontua que, no “processo licitatório para aquisição de bens e contratação de serviços em geral, conforme regulamento, o valor estimado será definido com base no melhor preço aferido por meio da utilização dos seguintes parâmetros, adotados de forma combinada ou não: I – composição de custos unitários menores ou iguais à mediana do item correspondente no painel para consulta de preços ou no banco de preços em saúde disponíveis no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP); II – contratações similares feitas pela Administração Pública, em execução ou concluídas no período de 1 (um) ano anterior à data da pesquisa de preços, inclusive mediante sistema de registro de preços, observado o índice de atualização de preços correspondente; III – utilização de dados de pesquisa publicada em mídia especializada, de tabela de referência formalmente aprovada pelo Poder Executivo federal e de sítios eletrônicos especializados ou de domínio amplo, desde que contenham a data e hora de acesso; IV – pesquisa direta com no mínimo 3 (três) fornecedores, mediante solicitação formal de cotação, desde que seja apresentada justificativa da escolha desses fornecedores e que não tenham sido obtidos os orçamentos com mais de 6 (seis) meses de antecedência da data de divulgação do edital; e V – pesquisa na base nacional de notas fiscais eletrônicas, na forma de regulamento.”  

Essa é uma matéria que, no nosso entendimento, não depende de nova regulamentação para ser aplicada. É válida, vigente e eficaz. Fica muito evidente que a teleologia da nova Lei é a mesma presente na Instrução Normativa nº 73/2020, a qual dispõe sobre o procedimento administrativo para a realização de pesquisa de preços para a aquisição de bens e contratação de serviços em geral, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Logo, toda a disciplina prevista nessa Instrução Normativa que não conflitar/contrariar a nova Lei, foi recepcionada e, nesse sentido, sem sombra de dúvida, compreenderá o norte de aplicação da nova Lei, até que um novo regulamento seja editado.  

O mesmo se diga relativamente às terceirizações, sobretudo aquelas envolvendo mão de obra em regime de exclusividade. O tratamento conferido pela nova Lei de Licitações está alinhado com a disciplina presente no Decreto nº 9.507/2018 e na Instrução Normativa nº 05/2017, de modo que, possível entender, estes normativos foram recepcionados pela nova Lei de Licitações, até que novos normativos sejam elaborados e publicados. Aliás, será um importante alicerce para o tratamento de aspectos não disciplinados pela nova Lei, cobrindo essas lacunas, bem como porque compreende, na atualidade, o marco normativo que encerra as boas práticas em terceirizações de serviços amplamente recomendadas pelos órgãos de controle. Evidentemente, não serão aplicadas as disposições que contrariarem/conflitarem com a Lei nº 14.133/2021.  

Por outro lado, podemos citar um exemplo de disciplina da nova Lei de Licitações cuja aplicação depende do exercício do poder normativo, sendo norma de eficácia limitada: “Art. 26. No processo de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para: I – bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras; II – bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento. § 1º A margem de preferência de que trata o caput deste artigo: I – será definida em decisão fundamentada do Poder Executivo federal, no caso do inciso I do caput deste artigo; II – poderá ser de até 10% (dez por cento) sobre o preço dos bens e serviços que não se enquadrem no disposto nos incisos I ou II do caput deste artigo; III – poderá ser estendida a bens manufaturados e serviços originários de Estados Partes do Mercado Comum do Sul (Mercosul), desde que haja reciprocidade com o País prevista em acordo internacional aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Presidente da República. § 2º Para os bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País, definidos conforme regulamento do Poder Executivo federal, a margem de preferência a que se refere o caput deste artigo poderá ser de até 20% (vinte por cento).”  

Em conclusão: a Lei nº 14.133/2021 está vigente e é aplicável, desde 1º.04.2021. E apesar de em diversas vezes sujeitar determinada disciplina a regulamento/edição de ato, nem todas essas regras podem ser consideradas “normas de eficácia limitada”.  Pela “teoria da recepção”, utilizada até mesmo para amparar a receptividade de normas anteriores a novo texto constitucional (quiçá, novo texto legal, como é o caso), devem ser acolhidas instruções, orientações normativas e, mesmo, decretos, desde que exista identidade de teleologia/compatibilidade material (e observadas as demais diretrizes indicadas no texto) e, é claro, naquilo que não conflitar materialmente com o novo regime jurídico. 

Com a sobrevinda de novos normativos, o que deve acontecer e é de todo recomendável, é que esses deixarão de ser aplicados. 

Esse encaminhamento, além de operar em favor da eficiência e da segurança jurídica, potencializa a aplicação da nova Lei de Licitações por parte dos órgãos e entidades da Administração Pública, prestigiando o novel regime jurídico das contratações públicas. 

O que se orienta, de toda forma, sobretudo em razão da grande polêmica envolvendo a temática, é que o edital da licitação seja expresso relativamente às normas utilizadas no processo de contratação.

POST ATUALIZADO: o racional desenvolvido no texto envolve as normas de eficácia limitada e não contida, como constava da redação anterior.

Continua depois da publicidade
Seja o primeiro a comentar
Utilize sua conta no Facebook ou Google para comentar Google

Assine nossa newsletter e junte-se aos nossos mais de 100 mil leitores

Clique aqui para assinar gratuitamente

Ao informar seus dados, você concorda com nossa política de privacidade

Você também pode gostar

Continua depois da publicidade

Colunas & Autores

Conheça todos os autores
Conversar com o suporte Zênite