Inauguramos uma série sobre um tema – inexigibilidade – que tem extrema relevância no dia a dia o agente público, mas que é permeado por vários mitos. Vamos agora, iniciar a desconstrução de alguns desses mitos e apresentar uma construção absolutamente lógica e acessível sobre contratação pública. Assim, de plano, reforço o convite a você leitor, já realizado pela colega Alessandra C. Santos, para mais do que acompanhar a apresentação do raciocínio, ajudar-nos a construí-lo e aprimorá-lo.
Já lhes foi questionado por que tememos tanto contratar por inexigibilidade de licitação. Das possíveis respostas, escolho uma delas para explorar, pois a vejo como uma das maiores inverdades já contadas sobre contratação pública: “porque a licitação é regra e a contratação por inexigibilidade é exceção”. Ela inaugura e embasa os outros medos (irregularidades, insegurança, responsabilização, ausência de conhecimento para fundamentar, justificar a escolha do contratado e tantas outras assombrações).
Lembremo-nos que quando falamos de contratação pública, falamos de uso (adequado) de recursos públicos. E, como já dissemos, historicamente o dinheiro público é estigmatizado pelo mau uso.
Para tentar amenizar um pouco essa cultura disseminada (e muitas vezes comprovada), para tentar acabar com a fama de que sempre os favorecidos com o recurso, que é público e, portanto, de todos, eram os “amigos do rei”, em determinado momento da história, elegeu-se a “licitação” para salvar a pátria. Com ela quis se estabelecer uma nova cultura: a de que daquele momento em diante o dinheiro público seria aplicado por meio de um processo isonômico – a licitação – e por meio dele, e somente por meio dele, seria utilizado legal e adequadamente, sem privilégios, sem vantagens, sem benefícios. Ora, a lógica utilizada foi simples: ao contratar um terceiro por meio de um processo objetivo e isonômico, estaríamos acabando com qualquer acusação de fraude ou favorecimentos, pois o processo fala por si só. Problema resolvido.
Isso é verdade? Em partes. Primeiramente porque sabemos que não existe, em nada nem em lugar algum, uma solução perfeita para tudo. Existem soluções adequadas a depender do caso. Logo, a licitação veio resolver parte dos problemas. Segundo porque, convenhamos, para a indevida utilização do recurso público, certamente a licitação não seria a solução (quem dera o fosse!).
Mas, agora deixando de lado um pouco a história, a cultura e todos os ingredientes que contribuíram para que acreditássemos que a licitação é a cura para todos os males e a inexigibilidade é uma vilã, pois representa o resquício histórico dos maus tempos de fraudes, corrupção e escolhas arbitrárias, vamos voltar um pouco o olhar para o estudo do processo de contratação pública e entender que, longe dos mitos e dos motivos que nos fizeram enxergá-la como hoje a enxergamos, existe um modo de estudá-la e compreendê-la que nos permite usar de todos os instrumentos que a legislação nos dispõe de modo absolutamente adequado e legal, pois compreendendo a contratação pública – mundo onde se insere a inexigibilidade – poderemos ao mesmo tempo sanar as necessidades públicas – fim máximo da Administração – e cumprir com todos os preceitos legais – dever de todo agente público.
E nesse contexto pretende-se demonstrar que a licitação é o caminho perfeito para contratar objetos que possam ser submetidos ao procedimento que ela propõe: um procedimento em que o terceiro é escolhido por meio de um critério objetivo de julgamento (na linguagem legal, por meio de um ‘tipo de licitação’, que pode ser o menor preço, a melhor técnica, a melhor congregação entre técnica e preço ou ainda, para algumas situações pontuais, o melhor lance). Nesses casos, onde a solução a ser contratada permite que o parceiro seja escolhido por meio de um critério objetivo, a licitação é mais do que a regra, ela é obrigatória, porque não comporta exceção.
Do contrário, quando estamos diante de soluções que não podem ser submetidas ao procedimento objetivo da licitação, ela não poderá ser utilizada como meio para celebração do contrato, simplesmente porque ela não permitirá a escolha da melhor solução, pois imporá o uso de um critério inadequado. Existem soluções que simplesmente não poderão ser submetidas a uma escolha objetiva, porque são subjetivas na essência. Existem soluções que não podem ser definidas objetivamente e portanto, não podem ser comparadas, julgadas e selecionadas por meio de um critério objetivo que privilegie o menor preço ou a melhor técnica ou a conjugação de critérios de técnica e preço. Para esses casos, tem lugar a inexigibilidade, que se torna o caminho obrigatório. A inexigibilidade é o melhor caminho para que a Administração contrate soluções que na essência exigem uma avaliação subjetiva. Mas essa avaliação subjetiva não pode ser simplesmente particular da pessoa que escolhe, mas sim do agente público que, na sua função, presenta a Administração Pública e fala em nome público, de todos, portanto.
Em síntese, podemos dizer que a Administração, ao planejar uma contratação pública, deverá definir a sua necessidade, isto é, deverá identificar qual o problema precisa solucionar. Definido isso irá definir qual a melhor solução para seu problema. Olhando para a solução a Administração irá escolher qual o caminho deverá tomar para conduzir sua contratação e celebrar o contrato: a licitação ou a inexigibilidade.[1]–[2].
Na próxima postagem iremos abordar as soluções que devem ser contratadas por meio de licitação e, na sequência, falaremos das soluções que devem ser contratadas por inexigibilidade.
Por ora, fiquemos com a ideia de que a licitação e a inexigibilidade são dois caminhos absolutamente legítimos que poderão conduzir à melhor contratação, desde que escolhidos corretamente. Um não é regra nem outro é exceção. São obrigatórios ou proibidos, a depender da solução que se irá contratar. Porém, hoje atuamos condicionados por uma mentira que foi contada cem vezes…ou mais!
[1] O planejamento da contratação passa por vários outros atos, todos de suma importância para o sucesso da contratação e inclusive para a escolha do melhor caminho a ser adotado, os quais poderão ser conhecidos e aprofundados no livro ‘O Processo de Contratação Pública – fases, etapas e atos’, de autoria de Renato Geraldo Mendes (Curitiba: Zênite, 2012) bem como em vários artigos publicados pelo mesmo autor na Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC, disponíveis também na WebZenite (www.zenite.com.br). Na mesma obra, o estudo completo do processo de contratação pública, com ênfase para o olhar inédito sobre inexigibilidade, aqui abordado.
[2] Aqui, vale fazer um parêntese para esclarecer que a dispensa de licitação será abordada em momento oportuno. Por ora, basta saber que a Administração, num primeiro momento, ao planejar sua contratação, após definir a solução que irá contratar, deverá optar entre dois caminhos igualmente e legalmente possíveis para celebrar o contrato administrativo: licitação ou inexigibilidade.