O Decreto Federal n. 8.945/2016 e as licitações das estatais

Estatais

A Presidência da República editou o Decreto Federal nº 8.945, de 27 de dezembro de 2016, que regulamenta no âmbito da União a Lei nº 13.303/2016. Então, já se diga desde o início, o Decreto Federal nº 8.945/2016 não incide sobre as estatais pertencentes ou controladas por Estados, Distrito Federal e Municípios. Vale apenas para as estatais federais.

De toda sorte, o Decreto Federal é dedicado, quase integralmente, às normas sobre governança das estatais. Apesar disso, as questões sobre governança não foram apressadas. O prazo previsto no art. 91 da Lei n. 13.303/2016 de 24 (vinte e quatro) meses para as estatais adaptarem-se e passarem a aplicar as novas normas não foi encurtado. O art. 64 do Decreto Federal, por exemplo, concede o prazo até 30 de junho de 2018 para as estatais federais promoverem as adequações em seus estatutos sociais. O Decreto Federal deu o mesmo prazo, porque em 30 de junho de 2018 completar-se-ão os 24 (vinte e quatro) meses concedidos pelo art. 91 da Lei n. 13.303/2016, dado que ela é de 30 de junho de 2016.

No Decreto Federal n. 8.945/2016 há apenas um dispositivo diretamente dedicado às licitações públicas e aos contratos, que é o art. 71, cujo teor é o seguinte:

Art. 71 – O regime de licitação e contratação da Lei n. 13.303, de 2016, é autoaplicável, exceto quanto a:

I – procedimentos auxiliares das licitações, de que tratam os art. 63 a art. 67 da Lei n. 13.303, de 2016;

II – procedimento de manifestação de interesse privado para o recebimento de propostas e projetos de empreendimentos, de que trata o § 4º do art. 31 da Lei n. 13.303, de 2016;

III – etapa de lances exclusivamente eletrônica, de que trata o § 4º da art. 32 da Lei n. 13.303, de 2016;

IV – preparação das licitações com matriz de riscos, de que trata o inciso X do caput do art. 42 da Lei n. 13.303, de 2016;

V – observância da política de transações com partes relacionadas, a ser elaborada, de que trata o inciso V do caput do art. 32 da Lei n. 13.303, de 2016; e

VI – disponibilização na internet do conteúdo informacional requerido nos art. 32, § 3ºart. 39art. 40art. 48 da Lei n. 13.303, de 2016.

§ 1o  A empresa estatal deverá editar regulamento interno de licitações e contratos até o dia 30 de junho de 2018, que deverá dispor sobre o estabelecido nos incisos do caput, os níveis de alçada decisória e a tomada de decisão, preferencialmente de forma colegiada, e ser aprovado pelo Conselho de Administração da empresa, se houver, ou pela assembleia geral.

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Pois bem, o Decreto Federal n. 8.945/2016 prescreve que a Lei n. 13.303/2016 é autoaplicável, o que é algo, para dizer o mínimo, estranho. Sucede que, com força no inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal, os decretos prestam-se apenas a dispor sobre a “fiel execução” da lei. Nesse sentido, não cabe ao Decreto decidir se dada lei é ou não autoaplicável e muito menos eleger, meio que aleatoriamente, partes de dada lei que seriam autoaplicáveis e partes que não seriam. Por óbvio, é a própria lei quem deve estabelecer se é ou não, em parte ou integralmente, autoaplicável.

E o Decreto Federal n. 8.945/2016 está equivocado nesse particular, porque a Lei n. 13.303/2016, na parte referente às licitações públicas e aos contratos, não é autoaplicável. A questão, admite-se, não é muito clara, mas o fato é que o art. 91 da Lei n. 13.303/2016 concede o prazo de 24 (vinte e quatro) meses para que as estatais adaptem-se e passem a aplicar a Lei n. 13.303/2016. Conectado a esse prazo, o art. 40 da Lei n. 13.303/2016 obriga as estatais a publicarem e a manterem atualizado regulamento interno de licitações e contratos. Logo, uma das etapas da adaptação a que se refere o art. 91 é justamente a elaboração do regulamento preceituado no art. 40. A conclusão, não deveria ser diferente, é que essa parte de licitações e contratos da Lei n. 13.303/2016 não é autoaplicável, depende do regulamento exigido pelo seu art. 40.

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Sem embargo, ainda que equivocado, não se pode fugir do fato de que o Decreto Federal n. 8.945/1995 prescreve que a Lei n. 13.303/2016 é autoaplicável. Por conseguinte, em que pese o argumento em contrário, é de supor que as estatais federais sigam o Decreto Federal.

Isso significa, na prática, que as estatais federais considerarão que podem aplicar a Lei n. 13.303/2016 sem produzirem os seus regulamentos. Não significa, deixa-se claro, que elas estejam obrigadas a aplicar a Lei n. 13.303/2016 imediatamente. Não há norma no Decreto Federal que as obrigue a isso e, não se esqueça, o art. 91 da Lei n. 13.303/2016 concede a elas o prazo de 24 (vinte e quatro) meses para promoverem adaptações. No entanto, aplicando o art. 71 do Decreto Federal n. 8.945/2016, se as estatais federais sentirem-se confortáveis e adaptadas, ainda que sem produzirem os seus regulamentos, estão autorizadas a aplicar de imediato a parte de licitações públicas e contratos da Lei n. 13.303/2016.

Essa compreensão, estampada no art. 71 do Decreto Federal n. 8.945/2016, produzirá efeitos negativos. Sucede que a Lei n. 13.303/2016 traz muitas novidades, institui nova sistemática, mais moderna e menos burocrática do que a sistemática tradicional fundada na Lei n. 8.666/1993, em que se ampliam consideravelmente os espaços de competências discricionárias dos colaboradores das estatais. O regulamento de licitações públicas e contratos deve dispor sobre os procedimentos, competências, critérios e aspectos que devem ser levados em consideração para o exercício de tais competências discricionárias. Sem o regulamento, essas competências discricionárias serão exercidas sem parâmetros preestabelecidos, o que tende a provocar decisões equivocadas e prejudiciais às estatais.

Além disso, a Lei n. 13.303/2016 deixou muitos espaços, questões básicas ficaram em aberto. Provavelmente, sem o regulamento, várias questões permanecerão sem respostas, ampliando as margens de insegurança jurídica e, mais uma vez, tendendo a provocar decisões equivocadas e prejudiciais às estatais.

O melhor seria que a Lei n. 13.303/2016 fosse discutida e que as conclusões fossem sistematizadas num regulamento, que prescrevesse os procedimentos, as competências e as balizas para as tomadas de decisões. É esse o sentido da própria Lei n. 13.303/2016, quando concede prazo de 24 (vinte e quatro) meses para adaptações e quando obriga as estatais a produzirem regulamento sobre licitações públicas e contratos, consoante a leitura combinada dos seus artigos 91 e 40.

Nada obstante, como também mencionado, o art. 71 do Decreto Federal n. 8.945/2016, sem qualquer justificativa, prescreve que alguns assuntos dentro da parte de licitações públicas e contratos não seriam autoaplicáveis e, portanto, dependeriam do regulamento previsto no art. 40 da Lei n. 13.303/2016. Porém, na lógica do Decreto Federal, esses tópicos não obstariam a imediata aplicação dos demais, que, nessa medida, não dependeriam daqueles.

E aqui se percebe outro equívoco do Decreto Federal n. 8.945/2016. É que alguns pontos considerados não autoaplicáveis são obrigatórios e deles depende a aplicação de outros pontos considerados autoaplicáveis. Veja-se que a matriz de risco, considerada não autoaplicável pelo inc. IV do art. 71 do Decreto Federal n. 8.945/2016, é obrigatória para os editais de contratações integradas e semi-integradas, conforme se depreende claramente da alínea “d” do inc. I do § 1º do art. 42. Nessa toada, se a matriz de risco não é autoaplicável, as contratações integradas e semi-integradas também não são. E o problema é que a contratação semi-integrada é a regra para as licitações de obras e serviços das estatais e somente pode deixar de ser utilizada com as devidas justificativas, como preceitua o § 4º do seu art. 42. Talvez a contratação semi-integrada seja a grande novidade da Lei n. 13.303/2016 e não poderá ser aplicada imediatamente, pelo menos até que o regulamento seja produzido, com as orientações a respeito da matriz de risco, que, repita-se, lhe é obrigatória.

É de desconfiar que a solução preconizada pelo art. 71 do Decreto Federal n. 8.945/2016, de considerar a Lei n. 13.303/2016 autoaplicável, seja mais política do que técnica. A produção do regulamento demanda esforço, reflexão e tempo, o que não anima muita gente. Parece fácil varrer o regulamento para debaixo do tapete e começar a aplicar de uma vez a Lei n. 13.303/2016, sem procedimentos sistematizados. Vai-se experimentando a Lei n. 13.303/2016, na lógica de erros e acertos. O problema são os erros que ficam pelo caminho, os prejuízos causados por eles e, mais importante do que tudo, a perda da oportunidade de fazer algo realmente bom e novo com as licitações públicas e contratos das estatais.

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