A Resolução CNJ nº 98 não é aplicavel a todas as contratações de serviços contínuos efetuadas por órgãos e entidades do Poder Judiciário

Terceirização

O campo das contratações públicas é rico em temas complexos e polêmicos. E não há exagero em se afirmar que a terceirização de serviços talvez seja um dos assuntos mais delicados de se tratar.

O conflito de interesses e de princípios gerais de Direito é comum e constante.

De um lado temos a Administração Pública tomadora dos serviços, cuja eficiência, plasmada no caput do art. 37 da Constituição Federal, depende da utilização desta modalidade de prestação de serviços. De outro, temos as empresas prestadoras de serviços e sua aparente predileção em não honrar suas obrigações da forma como são ajustadas nos contratos administrativos. No meio deles, temos os próprios trabalhadores, os quais não raramente assumem o papel de “bode expiatório”, arcando com parte do prejuízo decorrente dos desentendimentos ocorridos entre o tomador e o prestador de serviços.

Neste quadro o trabalhador é visivelmente a parte mais frágil, e nossas autoridades parecem saber disso, pois não titubeiam em promulgar Leis e outros atos normativos no intuito de proteger a classe trabalhadora.

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Algumas dessas normas mostram-se importantíssimas, salutares para garantir os direitos dos trabalhadores. Outras delas, no entanto, denotam um modo de agir impulsivo de nossas lideranças.

Exemplo de ato normativo pautado em premissas aparentemente equivocadas, a Resolução nº 98/2009, do Conselho Nacional de Justiça é constantemente criticada por Administradores e doutrinadores [1] .

Seu objeto é tratar das “[…] provisões de encargos trabalhistas a serem pagos pelos Tribunais às empresas contratadas para prestar serviços de forma contínua no âmbito do Poder Judiciário”, e logo em seu artigo 1º, impõem aos órgãos e entidades vinculados ao Poder Judiciário, quando da contratação de serviços contínuos, o dever de criar uma conta vinculada, obrigando-os a depositar ali a parcela do pagamento mensal devido ao prestador de serviços destinada a fazer frente uma série de obrigações trabalhistas [2] .

Ignorando-se as polêmicas quanto ao conteúdo da norma, levanta-se a seguinte questão: a Resolução nº 98/2009 do CNJ incide sobre todas as contratações de serviços contínuos efetuadas por órgãos e entidades ligadas ao Poder Judiciário? Será que esses órgãos e entidades são obrigados a criar a já mencionada “conta vinculada” toda vez que forem contratar serviços contínuos?

Afirma-se de pronto que a resposta, tudo indica, é negativa.

A principal finalidade da Resolução nº 98/2009 do CNJ é evitar a responsabilização subsidiária da Administração Pública decorrente do inadimplemento de obrigações trabalhistas por parte das empresas que lhe prestam serviços. Tal finalidade está disposta expressamente na Resolução, dentre as suas justificativas:

O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições constitucionais e regimentais, e
[…]
CONSIDERANDO a responsabilidade subsidiária dos Tribunais, no caso de inadimplemento das obrigações trabalhistas pela empresa contratada para prestar serviços terceirizados, de forma contínua, mediante locação de mão-de-obra, conforme a jurisprudência dos Tribunais trabalhistas;
[…]
RESOLVE:
[…].

Ora, se a finalidade da norma é evitar a responsabilização subsidiária da Administração em ações trabalhistas, então não há motivo para que ela incida nos casos em que, em função de características inerentes ao próprio prestador de serviços, não há risco de ocorrer tal responsabilização.

E tais hipóteses são mais corriqueiras do que se imagina.

Tome-se como exemplo profissional liberal, empresário individual, que presta serviços de contabilidade de forma continuada [3] para um determinado Tribunal. Imagine agora que este profissional conta com uma estrutura modesta, sem empregados. Nesta hipótese, não há o menor risco de a Administração Pública ser responsabilizada subsidiariamente pelo inadimplemento de obrigações trabalhistas, simplesmente porque não há obrigações trabalhistas para serem adimplidas.

O contador, apesar de prestar serviços continuados, não cede mão-de-obra para a Administração, já que ele sequer detém mão-de-obra para ser cedida, uma vez que ele não possui empregados.

Agora pergunta-se: qual seria a utilidade de se criar uma conta vinculada para fazer frente a esta contratação? Nenhuma, uma vez que não há qualquer verba de caráter trabalhista para ser depositada.

E essa visível inutilidade frente à hipótese aventada é a conseqüência prática de um equívoco essencialmente teórico: não havia, no caso, suporte fático para a incidência da norma.

Marcos Bernardes de Mello, ao tratar dos elementos da estrutura da norma jurídica, explica o suporte fático da seguinte maneira:

No estudo da problemática da juridicidade o primeiro elemento essencial a considerar é a previsão, por norma jurídica, da hipótese fática condicionante da existência do fato jurídico (suporte fáctico).
Quando aludimos a suporte fáctico estamos fazendo referência a algo (=fato, evento ou conduta) que poderá ocorrer no mundo e que, por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica. Suporte fáctico, assim, é um conceito do mundo dos fatos e não do mundo jurídico, porque somente depois que se concretizam (=ocorram) no mundo os seus elementos é que, pela incidência da norma, surgirá o fato jurídico e, portanto, poder-se-á falar em conceitos jurídic
o. [4]

A norma possui em seu bojo uma hipótese de incidência, a qual é o equivalente abstrato de algum fato, evento ou conduta do mundo real. Sua incidência somente se dá quando ocorre no mundo real o fato nela prescrito genericamente, o que faz surgir no mundo jurídico um fato jurídico.
A não ocorrência deste fato caracteriza a inexistência de suporte fático no qual a norma possa incidir. E a não incidência da norma indica a inexistência de fato jurídico, ou seja, a ausência de fato relevante para o Direito.

No exemplo proposto, a criação de uma conta vinculada seria inócua porque inexiste suporte fático para a incidência do art. 1º da Resolução nº 98/2009 do CNJ, cuja hipótese de incidência prevê a existência de um contrato de prestação de serviços do qual possa surgir responsabilidade trabalhista subsidiária para a Administração Pública.

Se esse evento não ocorre no mundo real, não há como falar na existência de fato jurídico, uma vez que a norma sequer chega a incidir. Não por outra razão, levar a cabo as medidas nela previstas acaba por se caracterizar em medida absolutamente desnecessária, irrelevante.

Considerações óbvias? Pode ser. Mas, infelizmente, apesar de óbvias, costumam gerar dúvidas, as quais são constatadas pelo crescente número de consultas a respeito do tema, recebidas pela equipe Zênite todos os dias.

_________________________________________________________

[1] Ricardo Alexandre Sampaio publicou recentemente uma matéria na Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC, na qual tece críticas contundentes à Resolução nº 98/2009 do CNJ, e a necessária obrigação de criação de contas vinculadas por partes dos órgãos e entidades integrantes do Poder Judiciário que contratarem a prestação de serviços contínuos. Ver: SAMPAIO, Ricardo Alexandre. Resolução CNJ nº 98 – Afinal, qual o objeto da terceirização? In: Revista Zênite de Licitações e Contratos – ILC nº 204, fev/2011, p. 144, seção “Terceirização”.

[2] Art. 1º Determinar que as provisões de encargos trabalhistas relativas a férias, 13º salário e multa do FGTS por dispensa sem justa causa, a serem pagas pelos Tribunais e Conselhos às empresas contratadas para prestar serviços de forma contínua, sejam glosadas do valor mensal do contrato e depositadas exclusivamente em banco público oficial.
Parágrafo único. Os depósitos de que trata o caput deste artigo devem ser efetivados em conta corrente vinculada – bloqueada para movimentação – aberta em nome da empresa, unicamente para essa finalidade e com movimentação somente por ordem do Tribunal ou Conselho contratante.

[3] Vale lembrar que um serviço não pode ser genericamente classificado como contínuo ou não. Qualquer serviço pode, no caso concreto, ser contínuo, desde que ele se mostre importante para a Administração de tal forma que sua cessação ocasione a interrupção das atividades daquele órgão ou entidade.

[4] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. – 13. ed. – São Paulo: Saraiva, 2007. p. 41.

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