O Novo Marco Legal do Saneamento e a impossibilidade de prorrogação de contratos de programa

Contratos Administrativos

Síntese: A Lei 14.026/2020, o Novo Marco Legal do Saneamento, tem como um de seus principais escopos a extinção do modelo contratual denominado de “contratos de programa”. Com isso, procura inibir os vícios do sistema brasileiro de saneamento, a fim de promover a universalização dos serviços. Logo, sua interpretação sistemática não permite arranjos que deem sobrevida a essa ordem de contratos administrativos. As autoridades públicas podem sanar os eventuais desequilíbrios de quaisquer outras formas, que não a prorrogação contratual. Este artigo analisa os dispositivos legais que definitivamente proíbem tais extensões do proibido.

Premissa: a extinção normativa dos contratos de programa

1. O Novo Marco do Saneamento tem vários escopos, que podem ser enfeixados num só: a instalação de concorrência no setor, com vistas a atrair investidores privados. Concorrência ex ante (por meio de licitações), com editais a estabelecer metas de universalização e respectivo controle por parte de autoridades competentes.

Fiel a esse objetivo de política pública setorial, o artigo 1º é expresso ao consignar que a Lei 14.026/2020 se destina a “vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos”.

Ou seja, e nos termos do artigo 7º da Lei Complementar 95/1998, este é o dispositivo que indica “o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação”. No Ordenamento Jurídico brasileiro, é para isso que servem os primeiros artigos de quaisquer leis: definir a que ela se destina e como deve ser aplicada.

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2. Por conseguinte, qualquer interpretação que pretenda, direta ou indiretamente, dar sobrevida aos contratos de programa será francamente ilegal – eis que o Novo Marco tem como um de seus principais escopos a vedação dessa ordem de contratos.[1]

Constatação que se confirma por meio da análise de alguns dos dispositivos da Lei 14.026/2020.

Os efeitos tácitos do veto ao art. 16 do projeto de lei

3. Comecemos pelo veto expresso ao artigo 16 do projeto de lei, que foi mantido pelo Poder Legislativo.

Apesar de o veto não ter efeitos normativos, fato é que ele impediu o reconhecimento e a prorrogação dos contratos de programa anteriores ao Novo Marco. Quando menos, o seu efeito é proibir que a prorrogação de tais contratos seja, ao mesmo tempo, lícita e ilícita. A partir de 2020, tais contratos não atendem à legalidade – e apenas serão mantidos os ora em vigor devido à proteção constitucional ao ato jurídico perfeito.

Ou seja, haverá período de transição, quando os contratos de programa originais exaurirão os respectivos prazos e atingirão seu termo final. A partir de então, essa espécie contratual restará extinta. A constatação advém do princípio da legalidade.

4. Isso porque, na justa medida em que o princípio da legalidade determina que as ações envolvendo contratos administrativos devem obediência à legislação em vigor, o gestor público não pode assumir condutas sem previsão legal que as autorizem. A legislação especial do setor de saneamento define, de modo exaustivo, a tipicidade de tais pactos jurídico-administrativos. Em assim o fazendo, concomitantemente proíbe negócios atípicos (sobretudo os de programa).

Não se está diante de discussão que sequer se aproxime do “mérito” de atos praticados pela autoridade pública, mas que trata apenas dos critérios formais de aferição da legalidade no exercício da competência administrativa do titular do serviço concedido. Incide a força do princípio da legalidade, obrigando condutas administrativas secundum legem.

Afinal, e como há tempos está consolidado no STF, “a Administração Pública, em toda a sua atividade, está sujeita aos mandamentos da lei, deles não se podendo afastar, sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor.” (RE 195227, Min. Maurício Corrêa, 2ª T., DJ 06/12/1996). Diante da tipicidade das formas contratuais, combinada com a expressa proibição a contratos de programa, qualquer prestígio a estes se afastará dos mandamentos legais.

5. Ou seja, a tentativa de quaisquer formas ou métodos ou técnicas de prorrogação dos contratos de programa será ilegal, eis que não é permitida pelo Novo Marco do Saneamento. Não é lícita a transposição de proibições por meio de bypasses hermenêuticos.

A ilegalidade das prorrogações, inclusive as “de reequilíbrio”

6. Como se sabe, uma das formas de se reequilibrar contratos de concessão é por meio de prorrogações. Ao invés de se indenizar o concessionário ou de se atenuar os custos de investimentos ou ainda aumentar a tarifa, o poder concedente estenderia o prazo dos contratos.[2] Todavia, essa solução, que é prestigiada pelo Ordenamento Jurídico brasileiro, encontra uma barreira explícita no caso dos contratos de programa.

Isso porque, em qualquer caso e sob qualquer forma que se pretenda implementar a prorrogação, ela depende da legalidade. Contratos de concessão podem ser prorrogados; isso é constitucional e legal (Constituição, art. 175, par. ún., inc. I; Lei 8.987/1995, art. 23, inc. XII). Todavia, não se pode prorrogar contratos cuja lei setorial destina-se à sua vedação. Simplesmente não há hipótese que possa prestigiar tal solução contra legem. Seria o mesmo que, por exemplo, se pretendesse prorrogar os malfadados “contratos” do setor de transporte coletivo urbano, que “haviam sido instalados anteriormente, mas se tornaram caducos pouco tempo depois (não obstante alguns insistiam em permanecer no mundo dos fatos, como os “contratos-zumbi” de algumas das concessões de transporte rodoviário: mortos vivos que persistem a mal-assombrar o direito das concessões).”[3] Ou seja, a prorrogação pressupõe a legalidade do contrato administrativo.

Afinal, a prorrogação não se dá automaticamente. Nos casos de contratos de saneamento, exige estudos prévios e, mais do que isso, a avaliação discricionária de que se trata da melhor solução possível. Contudo, a competência do agente público – inclusive a discricionária – é unicamente aquela atribuída por lei. Como a Lei 14.026/2020 destina-se a vedar contratos de programa, os agentes envolvidos, em todos os níveis federativos, não dispõem de competência que porventura os autorizasse a fazer essa escolha ilegal.

7. Em primeiro lugar, não se pode atuar em desvio de finalidade (ou abuso de poder), a fim de promover a aplicação do inciso III do § 2º do art. 11-B do Novo Marco, com o intuito de transformar o “aditamento de contratos já licitados, incluindo eventual reequilíbrio econômico-financeiro” numa sobrevida a um contrato proibido em lei.

A interpretação do Novo Marco deve-se dar a partir dele próprio, sobretudo em vista do parâmetro estatuído em seu artigo 1º. As normas explicam-se umas às outras, proibindo que o intérprete acrescente o significado de “prorrogação” à palavra “aditamento”.

Os contratos antigos, inclusive os de programa, devem ter o seu equilíbrio econômico-financeiro respeitado. Quanto a isso não pode haver qualquer dúvida. Todavia, isso não importa dizer que a solução de reequilíbrio possa ser contrária ao Novo Marco, reequilibrando-se o contrato de modo ilícito (seria o mesmo que, por exemplo, se pretendesse reequilibrar por meio da transferência dos bens públicos da infraestrutura da concessão).

Em suma, são contrárias ao princípio da legalidade as manobras hermenêuticas que porventura pretendam alongar contratos que não podem ter qualquer sobrevida: os de programa, eis que “não-licitados”. Por isso que o art. 11-B, § 2º, inc. III, faz referência ao reequilíbrio – e assim limita a sua validade – pela inclusão de metas só aos contratos “já licitados” (e assim veda aditamento a contratos “não-licitados”). O que se reforça com a lógica da Lei Complementar 95/1998: os incisos referem-se ao comando estampado no parágrafo, que trata de “Contratos firmados por meio de procedimentos licitatórios que possuam metas diversas (…)”. Ao definir, o preceito limita sua aplicação aos “já licitados” e exclui os “de programa” (“não-licitados”).

No caso do aditamento a contratos licitados, com vistas às metas preceituadas e/ou reequilíbrios, a prorrogação está dentre as alternativas permitidas em lei, eis que essa ordem de contratação persiste válida e eficaz.

8. De igual modo deve ser interpretado o artigo 13, inciso V, da Lei 14.026/2020. O decreto presidencial haverá de respeitar o dever de conferir “fiel execução à lei”, positivado no art. 84, inc. IV, da Constituição, e quaisquer alterações nos contratos de programa estarão parametrizadas com o escopo de promover a “transição para o novo modelo de prestação”.

Ora, onde está na lei escrito “transição” deve-se ler “passagem de um lugar, de um estado de coisas, de uma condição etc. a outra”.[4] Isto é, de mudar de lugar, situação ou condição – e jamais de “permanecer”. Mesmo porque a prorrogação dos contratos de programa seria uma “transição” contra legem: proibida pelo art. 1º da Lei 14.026/2020.

Caso se cogite de prorrogar contratos como técnica de promover a mudança, estar-se-á atentando não só contra a Lei 14.026/2020, mas especialmente contra a língua portuguesa. Essa solução hermenêutica de “infiel execução à lei” não pode ser prestigiada, sob pena de se acolher soluções ilícitas que corromperiam o sentido do Novo Marco do Saneamento e frustrariam a sua razão de ser.

9. A toda evidência, tampouco se poderia cogitar de eventual dispensa de licitação para assinatura de contratos de programa. A dispensa é o meio autorizado em lei, numerus clausus, para que o processo competitivo de licitação deixe de ser efetivado.[5] Ao invés de licitar, o gestor público assume a decisão de prescindir do certame competitivo, a fim de celebrar o contrato administrativo.

Por conseguinte, o pressuposto de validade da dispensa é a possibilidade de celebração de contrato administrativo autorizado em lei. O que não é o caso dos contratos de programa, cuja supressão do cenário jurídico é imposta pela Lei 14.026/2020.

Mais: como essa modalidade de contratação direta é exceção à regra geral de licitar, as suas hipóteses devem se aplicadas de modo restrito. A dispensa exige, portanto, prévia e explícita autorização normativa para que o contrato seja celebrado sem o prévio certame licitatório. O que não é o caso dos contratos de programa diante do Novo Marco do Saneamento.

10. Por fim, o mesmo se diga quanto aos consórcios públicos. A Lei 14.026/2020 aplica-se in totum a tais pessoas jurídicas autárquicas, cujo regime jurídico há de ser obediente à legalidade setorial.

Não foi devido a um acaso que a Lei 11.107/2005 teve o seu artigo 13 (que trata de contratos de programa) acrescido do seguinte preceito: “§ 8º Os contratos de prestação de serviços públicos de saneamento básico deverão observar o art. 175 da Constituição Federal, vedada a formalização de novos contratos de programa para esse fim.” (incluído pela Lei 14.026/2020). Logo, é vedado que os consórcios públicos prorroguem os antigos ou celebrem novos contratos de programa.

Considerações finais

11. Como se constata, a Lei 14.026/2020 proíbe, de modo literal e também por meio de sua interpretação sistemática, qualquer hipótese de prorrogação de contratos de programa.


[1] No mesmo sentido, ampliar no apurado estudo de Gustavo Kaercher Loureiro, “Observações sobre a prorrogação de contratos de programa sob o Marco do Saneamento”, FGV – CERI. Disponível em: https://ceri.fgv.br/home. Acesso em: 31/03/2021.

[2] Cf. Egon Bockmann Moreira, “Contratos de concessão comum: particularidades de sua execução e extinção”, in D. J. V. Tafur; G. J. Jurksaitis e R. H. Issa (orgs.), Experiências práticas em concessões e PPP. São Paulo: Quartier Latin, 2021, p. 305-330.

[3] Egon Bockmann Moreira, Direito das Concessões de Serviço Público. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 15.

[4] Cf. Dicionário Houaiss. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/v5-4/html/index.php#1. Acesso em 28/03/2021.

[5] Sobre as modalidades de contratação direta e sua razão de ser, v. Renato Geraldo Mendes e Egon Bockmann Moreira, Inexigilidade de Licitação. Curitiba: Zenite Editora, 2016; especificamente sobre a dispensa, v. Egon Bockmann Moreira e Fernando Vernalha Guimarães, Licitação Pública, 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, pp. 467-488.

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