Assunto que gera bastante discussão no âmbito administrativo diz respeito à aplicação da sanção de suspensão do direito de licitar e de declaração de inidoneidade previstas, respectivamente, no Art. 87, III e IV da Lei nº 8.666/1993. Um dos aspectos que chamam muita atenção quanto a estas sanções refere-se à sua amplitude perante as diferentes esferas da Administração. Nessa linha, cumpre analisar alguns entendimentos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema.
Antes de tudo, cumpre ressaltar que a doutrina e a jurisprudência possuem entendimentos diversos quanto a amplitude da suspensão e da declaração de inidoneidade, tendo em vista que na primeira o dispositivo legal menciona o vocábulo “Administração” e na segunda resta mencionado o vocábulo “Administração Pública”.
Uma parte da doutrina, conforme se verá a seguir, entende que essa diferença, existente no texto legal, confere maior abrangência para a declaração de inidoneidade em relação à suspensão. Em contrapartida, existem entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que não apontam diferença alguma quanto a estes termos. Senão vejamos.
De acordo com Carlos Ari Sundfeld o silêncio da Lei quanto à abrangência das sanção contida no Art. 87, III da Lei de Licitações deve levar à interpretação de que a suspensão do direito de licitar recai apenas em relação ao órgão administrativo que aplicou a sanção. Assinala o doutrinador “O fato de uma empresa sofrer a aplicação da sanção prevista no art. 87, inc. III (suspensão temporária da participação em licitações e contratações), só inviabiliza sua contratação pelo mesmo órgão ou pessoa jurídica que a puniu.” (SUNDFELD, Carlos Ari. A abrangência da declaração de inidoneidade e da suspensão de participação em licitações. Web Zênite. Doutrina -240/169/mar/2008)
Quanto à declaração de inidoneidade explica Carlos Ari Sundfeld que o impedimento de licitar subsiste em relação à esfera administrativa de quem tenha realizado o processo administrativo e aplicado a sanção, em respeito ao princípio da estrita legalidade em matéria sancionadora.
Nas palavras do autor “A tendência inicial do intérprete, raciocinando por padrões meramente lógicos, é a de, constatando ser a inidoneidade um dado subjetivo, que acompanha a empresa onde ela for, sustentar o caráter genérico das sanções de que se cuida. Deveras: em termos racionais, é impossível ser inidôneo para fins federais e não sê-lo para efeitos municipais. Mas há de considerar um fator jurídico de relevância a afastar o mero enunciado lógico. Silente a lei quanto à abrangência das sanções, deve-se interpretá-la restritiva, não ampliativamente, donde a necessidade de aceitar, como correta, a interpretação segundo o qual o impedimento de licitar só existe em relação à esfera administrativa que tenha imposto a sanção.” (grifo nosso) (SUNDFELD, Carlos Ari. Licitação e contrato administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 117.)
Também aduz Toshio Mukai sobre o tema “A sanção prevista no inc. III valerá para o âmbito do órgão que a decretar e será justificada, regra geral, nos casos em que o infrator prejudicar o procedimento licitatório ou a execução do contrato por fatos de gravidade relativa. Já aquela (sanção) prevista no inc. IV valerá para o âmbito geral, abrangendo a entidade política que a aplicou, e será justificada se o infrator age com dolo ou se a infração é de natureza grave, dentro do procedimento licitatório ou na execução do contrato” (grifo nosso) (MUKAI, Toshio. Novo Estatuto Jurídico das Licitações e Contratos Administrativos, São Paulo, 2ª edição, p. 84).
Por outro lado, aponta Marçal Justen Filho que a aplicação da sanção de declaração de inidoneidade, bem como a sanção relativa à suspensão do direito de licitar, implica na perda do direito de participar em certames licitatórios promovidos por qualquer órgão da Administração Pública.
Assinala o autor “O que se pode inferir, da sistemática legal, é que a declaração de inidoneidade é mais grave do que a suspensão temporária do direito de licitar – logo, pressupõe-se que aquela é reservada para infrações dotadas de maior reprovabilidade do que esta. Seria possível estabelecer uma distinção de amplitude entre as duas figuras. Aquela do inc. III produziria efeitos no âmbito da entidade administrativa que a aplicasse; aquela do inc. IV abarcaria todos os órgãos da Administração Pública. Essa interpretação deriva da redação legislativa, pois o inc. III utiliza apenas o vocábulo Administração, enquanto o inc. IV contém Administração Pública. No entanto, essa interpretação não apresenta maior consistência, ao menos enquanto não houver regramento mais detalhado. Aliás, não haveria sentido em circunscrever os efeitos da suspensão de participação de licitação a apenas um órgão específico. Se um determinado sujeito apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com a Administração Pública, os efeitos dessa ilicitude se estendem a qualquer órgão. Nenhum órgão da Administração Pública pode contratar com aquele que teve seu direito de licitar suspenso.” (Justen Filho, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos.São Paulo. Dialética. 2008. 12ª edição. p. 821-822)
Ao analisar caso em que se debatia a questão, o Superior Tribunal de Justiça corroborou o entendimento esposado por Marçal Justen Filho, e decidiu que “Infere-se da leitura dos dispositivos que o legislador conferiu maior abrangência à declaração de inidoneidade ao utilizar a expressão Administração Pública, definida no art. 6º da Lei 8.666/1993. (…) A norma geral da Lei 8.666/1993, ao se referir à inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, aponta para o caráter genérico da referida sanção, cujos efeitos irradiam por todas as esferas de governo. A sanção de declaração de inidoneidade é aplicada em razão de fatos graves demonstradores da falta de idoneidade da empresa para licitar ou contratar com o Poder Público em geral, em razão dos princípios da moralidade e da razoabilidade. O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento de que o termo utilizado pelo legislador – Administração Pública -, no dispositivo concernente à aplicação de sanções pelo ente contratante, deve se estender a todas as esferas da Administração, e não ficar restrito àquela que efetuou a punição.” (REsp 550.553-RJ, Rel. Min. Hermann Benjamin, DJ 03.11.2009)
O Tribunal de Contas da União possui entendimento misto quanto ao tema. Em relação à suspensão do direito de licitar a jurisprudência majoritária do TCU assenta na idéia de que ela se restringe apenas ao órgão/ente administrativo que aplica a sanção. Assinala o TCU “Se é defensável que alguém considerado inidôneo em determinada esfera administrativa não o seja em outra, muito mais razoável é admitir-se que a suspensão temporária do direito de licitar seja válida apenas no âmbito do órgão ou entidade que aplicou a penalidade, não apenas por raciocínio lógico, mas principalmente em atenção ao princípio da legalidade, que deve nortear toda a atividade da Administração Pública.” (TCU, Decisão nº 352/1998, Plenário, Rel. Min. Bento José Bugarin, DOU de 22.06.1998)
A Corte de Contas, no entanto, possui entendimento diverso no que pertine a abrangência da declaração de inidoneidade. Segundo o TCU os efeitos desta sanção se estendem por toda a Administração Pública. Nessa linha “4.10.5. Já a penalidade do inciso IV do art. 87, segundo jurisprudência do TCU, impede o fornecedor de participar de licitações e de ser contratado por toda a Administração Pública, englobando, nos termos do inciso XI do art. 6º da mesma lei, a ‘administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas’. (TCU, Acórdão nº 2.218/2011, 1ª Câmara, Rel. Min. José Múcio, DOU de 19.04.2011.).
Ocorre que, atualmente, o TCU parece convergir para o entendimento de que a suspensão do direito de licitar, assim como a declaração de inidoneidade, abrange toda a Administração Pública. É o que se extrai do voto revisor do supracitado acórdão “Há, portanto, que se interpretar os dispositivos legais estendendo a força da punição a toda a Administração, e não restringindo as sanções aos órgãos ou entes que as aplicarem. De outra maneira, permitir-se-ia que uma empresa, que já se comportara de maneira inadequada, outrora pudesse contratar novamente com a Administração durante o período em que estivesse suspensa, tornando esta suspensão desprovida de sentido. Por essas razões, entendo que esta Corte deva rever seu posicionamento anterior, para considerar legal a inserção, pela Infraero, de cláusula editalícia impeditiva de participação daqueles incursos na sanção prevista no incisos III da Lei 8.666/93.” TCU, Acórdão nº 2.218/2011, 1ª Câmara, Rel. Min. José Múcio, DOU de 19.04.2011.).
Dos posicionamentos manifestados acima, tem-se que a interpretação sobre o vocábulo “Administração Pública” fixado pelo Art. 87 IV da Lei nº 8.666/1993 é muito controversa. Doutrinadores como Carlos Ari Sundfeld e Toshio Mukai, entendem que o conceito legal fixado no Art. 6º da Lei 8.666/1993 deve ser interpretado restritivamente e, por isso, a declaração de inidoneidade abrange, quando muito, a esfera de governo a qual pertencente o órgão/ente sancionador.
Em contrapartida, Marçal Justen Filho, o STJ e até mesmo agora o próprio TCU explicam que tanto a suspensão quanto a declaração de inidoneidade tem de ser interpretadas de modo amplo, de maneira a restringir a participação do sancionado de participar de qualquer certame realizado pela Administração Pública em caráter geral.
Não há, portanto, um entendimento pacificado acerca do tema. Qualquer decisão, seja para um lado seja para outro, irá gerar discussão. Contudo, em ambos os casos, qualquer punição desse calibre deve ser aplicada em virtude de fatos graves, considerados estes de acordo com um juízo de razoabilidade e proporcionalidade.
Além disso, é inafastável a existência de processo administrativo, em que se garanta o respeito aos princípios constitucionais da legalidade, do contraditório e ampla defesa, para a apuração desses fatos. Somente após cumprida essa etapa é que se pode verificar a necessidade ou não de realização de ato administrativo sancionador.