Uma questão jurídica da maior relevância, e que pode produzir importantes impactos na Administração Pública brasileira é: a aplicação da Lei nº 14.133/2021 (nova lei de licitações) depende da criação do Portal Nacional de Contratações Públicas?
O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é sítio eletrônico oficial destinado à: I – divulgação centralizada e obrigatória dos atos exigidos por esta Lei; II – realização facultativa das contratações pelos órgãos e entidades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de todos os entes federativos (art. 174).
À toda vista se trata de norma geral, aplicável, por disposição expressa normativa, para todos os entes federados. A corroborar esta tese, tem-se que o PNCP será gerido pelo Comitê Gestor da Rede Nacional de Contratações Públicas, que conta com a participação de representantes de todos os entes da federação (art. 174, §1º).
Com a edição da Lei nº 14.133/2021, o veículo oficial de divulgação dos atos relativos às licitações e contratações públicas passa a ser o PNCP.
Dentre outras referências, 2 normas versando sobre publicidade dos atos licitatórios e contratuais podem ser destacadas na nova lei.
Primeira, a contida no art. 54, que preceitua:
Art. 54. A publicidade do edital de licitação será realizada mediante divulgação e manutenção do inteiro teor do ato convocatório e de seus anexos no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP).
E aquela contida no art. 94:
Art. 94. A divulgação no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é condição indispensável para a eficácia do contrato e de seus aditamentos e deverá ocorrer nos seguintes prazos, contados da data de sua assinatura:
I – 20 (vinte) dias úteis, no caso de licitação;
II – 10 (dez) dias úteis, no caso de contratação direta.
§ 1º Os contratos celebrados em caso de urgência terão eficácia a partir de sua assinatura e deverão ser publicados nos prazos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo, sob pena de nulidade.
Referidas normas podem induzir a 2 conclusões distintas, ambas, claro, defensáveis, afinal, interpretação implica a busca do melhor significado, dentre os vários possíveis, de um determinado texto normativo.
A interpretação literal das normas pode, com efeito, levar à conclusão hermenêutica no sentido de que somente após a criação do PNCP a nova lei pode ser aplicada, pois (i) a publicidade dos editais de licitação deve ser feita no Portal; e (ii) a publicação do extrato do contrato no Portal é condição de sua eficácia.
Não parece ser esta a melhor interpretação.
Primeiro: porque o art. 194 determina que a Lei entra em vigor na data de sua publicação, o que ocorreu no dia 1º de abril de 2021.
Segundo: porque o art. 1º do Decreto-Lei nº 4.657/1942 estabelece que “salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada”.
Terceiro: a eficácia de uma norma somente pode ser limitada ou contida mediante disposição expressa – ou, como defendem alguns, no mínimo implícita.
Por fim, não parece atender o interesse público vincular a eficácia de uma lei à implementação de um banco de dados – a não ser que o objeto da lei fosse unicamente a criação deste banco de dados, ou que a sua aplicação dependesse materialmente dele – o que não é o caso.
Tem-se, assim, que a Lei nº 14.133/2021 é válida, vigente e eficaz (à exceção de eventuais normas que dependam de regulamentação, o que demanda indicação expressa, como dito).
Ora, se a Lei é vigente, pode ser aplicada. Ademais, a própria Lei estabelece que “até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso” (art. 191).
O legislador, em momento algum, vinculou a vigência da lei à criação do Portal Nacional de Contratações Públicas, o que pode levar a outra conclusão no que tange à aplicabilidade imediata da Lei nº 14.133/2021.
E esta outra conclusão decorre de uma interpretação sistemática ou sistêmica das normas contidas na nova lei de licitações.
Partindo-se da premissa de que a Lei tem vigência, e tem, como visto. E de que não se pode admitir eficácia contida ou limitada de nenhuma de suas normas sem expressa previsão também legal – ainda que implícita -, é possível deduzir conclusão no sentido da possibilidade de aplicação imediata do regime jurídico da Lei nº 14.133/2021.
O primeiro argumento em favor da eficácia imediata da Lei nova tem relação com a função do Portal Nacional de Contratações Públicas. Trata-se de um banco de dados que conterá informações relevantes e indispensáveis sobre licitações e contratações públicas.
Será, também como visto, o veículo oficial de publicidade dos atos relativos às licitações e contratos da Administração Pública – à exceção das empresas estatais.
Ora, esta função pode ser suprida, sem qualquer prejuízo de publicidade, pelo sistema de publicidade oficial dos atos administrativos. Normalmente a publicação em Diário Oficial. A publicidade dos atos relativos a licitações e contratos pode e deve ocorrer também por meio dos sítios eletrônicos oficiais – para conferir eficiência às publicações.
O relevante e de interesse público é que ocorra efetivamente a publicação dos instrumentos convocatórios e dos extratos dos contratos – cumprindo o princípio constitucional da publicidade.
Nem se diga que esta sistemática ensejará prejuízos ou riscos de publicidade, pois é a sistemática de que se vale a Administração Pública com fundamento na Lei nº 8.666/1993.
Nesta medida, a interpretação sistemática das normas que exigem a publicação no Portal Nacional de Contratações Públicas leva à conclusão de que (i) enquanto não for criado referido Portal, a publicidade dos atos e contratos se dará por intermédio dos veículos oficiais de publicação e sítios eletrônicos dos entes e órgãos da Administração Pública; e (ii) a publicação no Portal somente será condição para eficácia dos contratos após a sua efetiva criação.
O segundo argumento em favor da eficácia imediata da nova Lei é de ordem lógico-jurídica. Não há sentido jurídico em vincular a vigência e a eficácia de uma Lei à criação de um banco de dados informatizado, que se presta a uma finalidade – conferir publicidade aos atos – que pode ser atingida por outros meios jurídicos legítimos e válidos.
Por hipótese, imagine-se que, transcorridos os 2 anos de que trata o art. 193, II da nova Lei tenhamos a revogação da Lei nº 8.666/1993, mas ainda não tenhamos um Portal Nacional de Contratações Públicas.
Neste caso, lamentavelmente não poderemos mais realizar licitações ou contratações públicas, pois não haverá lei vigente ou eficaz, para, nos estreitos limites da legalidade administrativa, amparar a Administração Pública. Porque não foi criado um banco de dados informatizado…
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