O novo desenho institucional do saneamento

Contratos Administrativos

O setor de saneamento exige atenção. Apesar de necessário à
saúde pública, seu novo marco institucional (Lei 14.026/2020)
experimentou enorme resistência. Logo, é de se supor que haverá impasses quando
de sua aplicação.

O ponto de partida é o fato de que o modelo anterior comprovou
sua ineficiência. Originalmente instituído na década de 1970, funcionou até
certo ponto. Depois, mais se prestou a consolidar esferas de poder político –
estadual e municipal – do que à universalização dos serviços. O que hoje existe
é um cipoal de leis, empresas estatais, agências reguladoras, contratos e
convênios. Algumas pessoas sabem o que fazer, outras nem tanto.

Quem sai perdendo com essa confusão é a população que
necessita dos serviços. Afinal, a assimetria de informações e variação de modelos
contratuais gera insegurança jurídica. Permite condutas oportunistas, públicas
e privadas. Por isso que está mais do que na hora de se consolidar soluções uniformes,
que dêem aplicação ao novo desenho institucional em termos nacionais.

O que passa pela compreensão do nosso modelo de federalismo regulatório
do setor de saneamento, a fim de reforçar a separação dos poderes e atribuir
competências certas a todos e a cada um dos atores.

O Estado unitário brasileiro teve seu poder político nacional
dividido em 1888/1891, por meio do federalismo por desagregação. A partir de
1988, consolidou-se em União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a albergar
intensa multiplicação dos poderes do Estado. O que se acentua no setor de água
e saneamento, onde a titularidade do serviço é primariamente local, mas gera
externalidades em outros municípios, regiões, estados, na federação e até
transnacionais. A água é captada em lugares distintos do consumo e o esgotamento
é lançado em outros tantos.

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Bem vistas as coisas, estamos diante da imperiosidade de se
harmonizar e conjugar nossa peculiar separação dos poderes. Por um lado, União,
Estados e Municípios (além das regiões metropolitanas e consórcios públicos);
por outro, poderes executivos, legislativos e agências reguladoras
independentes. É necessário tornar uniforme a convivência entre normas oriundas
de pessoas diversas, advindas de fontes normativas distintas.

Este sistema
regulatório multinível e multifontes, estruturado em redes de pessoas e
autoridades, exige a predefinição de diretrizes, de linhas mestras nacionais,
as quais permitam a efetivação do dever de universalização. O que requer do
intérprete – e dos aplicadores – esforço hermenêutico substancial, a fim de
tornar eficiente o setor de saneamento.

Enfim, a
Constituição preceitua que à União cabe “instituir diretrizes” (art. 21, inc.
XX); à União, Estados, Distrito Federal e Municípios, “promover programas”
(art. 23, inc. IX) e “formulação da política e execução de ações” (art. 200,
inc. IV). Já às Regiões Metropolitanas (art. 25, § 3º) e aos consórcios
públicos e convênios de cooperação (art. 241) vigoram competências a ser
definidas caso a caso, pelo legislador ordinário (sozinho ou em cooperação).

Pode-se falar em
parâmetros de compatibilização entre as competências gerais (União e Estados) e as específicas (Municípios), regidas pelos princípios federativos da
subsidiariedade e da cooperação. As competências específicas dos Municípios não se prestam a inviabilizar as gerais da União e dos Estados. Está-se
diante de tensões entre o local e o nacional (diretrizes), e entre o local e o
interesse comum de regiões metropolitanas.

Bem verdade que,
nesse palco interfederativo, assume protagonismo o papel dos Municípios e suas
garantias de autoadministração e autogoverno. Contudo, o interesse local, por
mais forte, marcante e pragmático que seja, não ultrapassa duas fronteiras:
geográficas e regulamentares (conveniais e contratuais). Assim como não podem
ultrapassar as fronteiras físicas, tampouco podem romper os regulamentos,
convênios e contratos.

Por isso que os Municípios
devem sim se submeter às diretrizes da União (interesse nacional) e das Regiões
Metropolitanas (interesse comum). São os princípios da autoadministração e do
autogoverno que autorizam os Municípios a celebrar (ou não) convênios; aderir
(ou não) aos financiamentos e às diretrizes regulatórias federais. Todas essas
ações orientadas por um só dever: o de implementar a universalização dos
serviços de saneamento.

Mas, atenção:
estes desafios não conseguem ser resolvidos pelo Direito Constitucional antigo,
que se pauta pela legalidade fechada e poderes Executivos autossuficientes, sem
comunicação interfederativa. O mesmo se diga do Direito Administrativo
tradicional, que raciocina em termos de Estado unitário com centralização decisória
e única fonte normativa.

Nesse mundo antigo, não se
entende o que são agências independentes e competências interfederativas. Não
se cogita de regulamentos constitutivos dinâmicos, emanados por autoridade
independente federal, a incidir em autoridades estaduais, regionais e
municipais. Essa multiplicidade de níveis e fontes normativas precisa ser
compreendida, eis que existe e necessita de aplicação.

Por isso que se faz
necessário por em foco tais peculiaridades e propor a respectiva
sistematização. Precisamos falar seriamente na cooperação federativa, inclusive
em termos do novo desenho institucional do setor de saneamento. E quem fala em
cooperação trata de arranjo de competências dúcteis e dinâmicas, a atender as
exigências que a realidade impõe.

No caso do saneamento
podemos pensar em fontes normativas federais com incidência multifederativa (a
tutelar o interesse nacional).
Estas seriam basicamente as leis e as resoluções da ANA. Ao seu tempo, as
fontes normativas estaduais tutelariam o interesse comum setorial, positivadas em leis estaduais, regulamentos
administrativos, estatutos de estatais, convênios de cooperação, consórcios
públicos (leis e atos associativos), contratos de concessão (e de
subconcessão). Ao nível municipal, o interesse local é tutelado pelas leis municipais, regulamentos
administrativos, contratos e convênios.

O tema do federalismo e da repartição de competências ainda é um dos pontos desafiadores em matéria de saneamento básico. O importante é nos conscientizarmos do dever de respeito às fontes normativas – desde a Constituição até os contratos – que só será eficiente se compreendida sob a perspectiva de um federalismo cooperativo, em vista da universalização.

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