Breves notas sobre a “decisão coordenada” – Lei 14.210/2021*

Contratos AdministrativosLicitaçãoSanções Administrativas

A Lei 14.210, de 30 de setembro de 2021, acrescentou importante tema ao processo administrativo brasileiro: a possibilidade de haver “decisão coordenada” na Administração federal.[1][2]

Em decorrência, a matéria passou integrar o Capítulo XI-A, arts. 49-A a 49-G, da Lei 9.784/1999 (Lei de Processo Administrativo federal). Examinemos melhor tais dispositivos, não sem antes apresentar o respectivo conceito normativo: “considera-se decisão coordenada a instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente.” Esse é, nos termos dos nossos dispositivos da Lei 9.784/1999, o que se pode entender por “decisão coordenada”.

Em primeiro lugar, note-se que Lei 14.210/2021 tem origem remota na proposta do anteprojeto de normas gerais para a Administração Pública, oriunda de grupo de juristas liderados pelo Professor Paulo Modesto, que tinha como um de seus eixos centrais a coordenação e a uniformidade da atuação administrativa, a fim de atenuar o risco de colisões e decisões antitéticas por parte de órgãos e entidades (inclusive quanto a órgãos de controle). [3]

Nesse sentido, a “decisão coordenada” é uma das formas de atuação cooperativa da Administração Pública – ou, como prefere Carolina Stéphanie Francis dos Santos Maciel, de “articulação administrativa”.[4] Os órgãos e entidades são incentivados a desenvolver esforços colaborativos, a fim de negociar soluções multipartes – inclusive, com incidência unitária em seus polos ativos (os sujeitos administrativos a quem se imputam os atos) e passivos (as pessoas privadas que experimentarão, direta ou indiretamente, os efeitos do ato).

Sérvulo Correia, ao tratar da “conferência procedimental” portuguesa, traz lições que assim podem ser adaptadas à “decisão coordenada” brasileira: trata-se de processo acessório, que instala “uma matriz do exercício em comum ou conjugado de competências tituladas por órgãos distintos”, com vistas à “promoção da eficiência, da economicidade e da celeridade da atividade administrativa”.[5] Talvez a conclusão mais importante esteja na natureza e regime jurídico do ato administrativo que resulta desse processo decisório sui generis: será um “ato unitário (e não um feixe de atos) mas de conteúdo complexo”, praticado apenas “quando for de cariz positivo” (eis que não pode resultar em ato global negativo, caso frustradas as negociações). Mas, atenção: será ato “complexo quanto à autoria, uma vez que é conjuntamente imputado à totalidade dos órgãos participantes.”[6]

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Vejamos como isso se dá no caso brasileiro, que tem lá suas peculiaridades. A possibilidade de se instalar o processo de decisão coordenada pode se dar desde que a matéria seja relevante e essa importância demande a articulação ou se “houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório” (art. 49-A, incs. I e II). Em contrapartida, é proibida a sua instalação em processos licitatórios, ou que envolvam “poder sancionador” – ou mesmo que envolvam autoridades de Poderes distintos (art. 49-A, § 6º, incs. I, II e III).

Dessa ordem de processo decisório coletivo poderão participar não só os órgãos e entidades imediatamente envolvidos, mas também aqueles os interessados que atendam aos requisitos do art. 9º da Lei 9.784/1999.

Todos os órgãos e entidades deverão apresentar “documento específico sobre o tema atinente à respectiva competência” (art. 49-E), que subsidiará os debates e haverá de ser levado em conta nas respectivas deliberações.

O processo de deliberação colegiada culminará, em prazo razoável, em ata a ser assinada por todos os órgãos e entidades participantes, da qual constarão, para além do relatório e síntese, especialmente: (i) o registro “das orientações, das diretrizes, das soluções ou das propostas de atos governamentais relativos ao objeto da convocação”; (ii) posicionamento expresso dos participantes “para subsidiar futura atuação governamental em matéria idêntica ou similar” e (iii) “decisão de cada órgão ou entidade relativa à matéria sujeita à sua competência” (art. 49-G, incs. IV, V e VI).

Ou seja, haverá uma decisão positiva coletiva, em dois níveis materiais de normatividade intersubjetiva: (i) os temas gerais, que promovam uniformização sobranceira às partes, e (ii) os temas especiais, relativos à competência privativa de cada órgão ou entidade. Existirá, portanto, um ato administrativo plurissubjetivo e complexo, eis que emana de várias pessoas e pode conter múltiplos assuntos, todos enfeixados e uniformizados numa só ata-decisão, a “decisão coordenada”.

Como se constata, portanto, a decisão coordenada tem a finalidade de permitir a participação/integração de todos os interessados/legitimados na futura decisão administrativa, a fim de acelerar e conferir unidade a processos decisórios complexos, que digam respeito a mais de um órgão ou entidade administrativa federal. Por um lado, incrementa o diálogo e a participação democrática na formação dos atos administrativos; por outro, diminui os conflitos (e respectivos custos), harmonizando perspectivas e soluções consensuais.

 

[1] O Projeto de Lei refere-se à Lei italiana 241/1990, que institui a conferenza di servizi (“conferência de serviços”). Ampliar em: Maria Coeli Simões Pires, Mila Batista Leite Corrêa da Costa, Caio Barros Cordeiro e José Luiz Ferreira Cardoso, “Conferência de serviços: reflexões e perspectivas para a construção de um novo instrumento de governança democrática” (disponível em: http://www.mariacoeli.com.br/conferência-de-serviços-reflexões-e-perspectivas-para-a-construção-de-um-novo-instrumento-de-governança-democratica1/).

[2] Igualmente, o Código de Procedimento Administrativo português (Decreto-Lei 4/2015) conta com a “conferência procedimental”, assim definida em seu art. 77º: “1 – As conferências procedimentais destinam-se ao exercício em comum ou conjugado das competências de diversos órgãos da Administração Pública, no sentido de promover a eficiência, a economicidade e a celeridade da atividade administrativa.” Sobre o tema, v. Tiago Serrão, “A conferência procedimental no novo Código do Procedimento Administrativo: primeira aproximação”, in Ana Celeste Carvalho (org.), “O Novo Código do Procedimento Administrativo”, O Novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2016, pp. 125-148, disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_novo_CPCA.pdf, (com amplas referências bibliográficas).

[3] Cf. Paulo Modesto, “Anteprojeto de Nova lei de Organização Administrativa: síntese e contexto”, Revista Eletrônica de Direito do Estado – REDE 27, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, jul./set. 2011, disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/codrevista.asp?cod=524

[4] “Articulação administrativa: por uma reforma cultural da administração pública”, Revista de Direito Administrativo – RDA 280/201-225. Rio de Janeiro, FGV, maio/ago. 2021, disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/84495/80109

[5] “Da conferência procedimental”, in Ana Celeste Carvalho (org.), “O Novo Código do Procedimento Administrativo”, O Novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2016, pp. 111-112, disponível em: http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_novo_CPCA.pdf

[6] Sérvulo Correia, “Da conferência procedimental”, cit., p. 116.


* Texto veiculado com autorização do autor e publicado originalmente na seção “Administração Pública” do portal JOTA, em 04.10.2021. Disponível em < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/breves-notas-sobre-a-decisao-coordenada-04102021>.

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