No Acórdão nº 2.198/2023 – Plenário do Tribunal de Contas da União, a representante se insurgiu, em suma, contra a desclassificação de seu lance, que teria sido inferior a 75% do valor estimado para a licitação, sem que lhe fosse dada a oportunidade de demonstrar a exequibilidade do valor ofertado.
O argumento da representante, em linhas gerais, espelhava o teor da Súmula nº 262 do próprio Tribunal de Contas da União, editada durante a vigência da Lei nº 8.666/1993, segundo a qual a Corte de Contas firmou entendimento de que mesmo constando expressamente no § 1º do art. 48 desta Lei que seriam consideradas “manifestamente inexeqüíveis”, o critério ali previsto conduzia a uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade da sua proposta.
Ocorre que, ao avaliar a aludida representação, o Plenário do TCU considerou que “o § 4º do art. 59 da Lei 14.133/2021 estabelece que, ‘No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração’.” Além disso, também considerou a previsão contida no inciso III do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, segundo a qual “serão desclassificadas as propostas que apresentarem preços inexequíveis”.
Ora, se de acordo com o § 4º do art. 59, “No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração” e consoante define o inciso III do mesmo artigo, “serão desclassificadas as propostas que apresentarem preços inexequíveis”, concluiu o Plenário do Tribunal de Contas da União que:
neste caso, não há que se cogitar da realização de diligências para aferir a inexequibilidade, pois o lance abaixo daquele percentual de 75% já é identificado pela própria Lei como inexequível, devendo a proposta ser desclassificada; (Destacamos.)
Em razão disso, decidiu pelo conhecimento da representação, porque satisfeitos os requisitos de admissibilidade, mas para considerá-la improcedente.
Para examinar o pano de fundo que permeia o caso em exame, não se pode perder de vista que um preço pode ser inexequível para um licitante, mas exequível para outro, uma vez que a condição de inexequibilidade depende, essencialmente, da capacidade de o licitante executar satisfatoriamente o encargo pelo valor proposto. Nesse sentido, as condições pessoais de cada licitante são determinantes para a aferição dessa condição, a exemplo da sua capacidade de negociação com fornecedores, economia de escala, regime tributário, custos logísticos, eventuais fontes de receitas alternativas, entre tantas outras.
Ainda que se possa argumentar que, com base em interpretação literal da previsão contida no § 4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021, ao participar da licitação para contratação de obra ou serviço de engenharia, de antemão o licitante já sabe que se ofertar preço inferior a 75% do valor orçado pela Administração, sua proposta será considerada inexequível e nessa condição será desclassificada, fato é que essa interpretação leva a definição de um preço mínimo.
Nesse caso, mesmo que a Lei nº 14.133/2021 não traga previsão literal similar àquela que constava do art. 40, inciso X da Lei nº 8.666/1993, que vedava a fixação de preços mínimos, fato é que adotar o critério definido pelo § 4º do art. 59 da Lei nº 14.133/2021 como uma presunção absoluta de inexequibilidade contraria a própria finalidade do processo licitatório, qual seja selecionar a proposta mais vantajosa (art.11, inciso I).
Sob esse enfoque, cogita-se a formação de duas conclusões:
- com base em interpretação literal do § 4º do art. 59, concluir que a Lei nº 14.133/2021 institui uma presunção absoluta de inexequibilidade de preços nas licitações para contratação de obras e serviços de engenharia, a qual não admite prova em sentido contrário; ou
- com base em interpretação sistemática do § 4º do art. 59, concluir que a Lei nº 14.133/2021 institui uma presunção relativa de inexequibilidade de preços nas licitações para contratação de obras e serviços de engenharia, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade do preço ofertado.
Ao que nos parece, a primeira opção, além de conflitar com a própria finalidade do processo licitatório, também se mostra incompatível com os princípios do interesse público e da economicidade, que foram expressamente consagrados pelo art. 5º da Lei nº 14.133/2021.
Como se vê, o método de interpretação literal adotado pelo Tribunal de Contas da União no caso em análise, não é o único e nem o melhor.
Considerando que a interpretação da norma requer, necessariamente, considerar o sistema no qual se insere, de modo a relacioná-la com outras concernentes ao mesmo objeto, no caso em questão, em especial a finalidade do processo licitatório e os princípios do interesse público e da economicidade, dada toda vênia, ousamos discordar das razões e do entendimento adotado pelo Egrégio Plenário do Tribunal de Contas da União no Acórdão nº 2.198/2023, para defender a compreensão de que, nas licitações para contratação de obras e serviços de engenharia, o § 4º do art. 59 da Lei 14.133/2021 estabelece uma presunção relativa de inexequibilidade de preços, de modo que, como regra, em situação de suposta inexequibilidade não será admissível a desclassificação direta de proposta sem que seja facultada ao licitante oportunidade de demonstrar a exequibilidade do valor ofertado.