A Lei n° 14.133/2021 foi, enfim, publicada. Não é a lei disruptiva que parte da comunidade jurídica aspirava (uma lei do século XXI), mas é a lei que foi possível ser construída no atual momento (ainda que mais voltada à realidade do século XX). A despeito da estrutura tradicional de licitar e do regime jurídico dos contratos administrativos ter sido integralmente mantido (poderia ter se pensado, por exemplo, em modulação das cláusulas exorbitantes), fato é que inúmeros avanços podem ser percebidos.
A Lei n° 8.666/1993, em especial, refletia o estado da arte do Direito Administrativo de 1993. Muita coisa mudou de lá para cá e, em certa medida, a Lei n° 14.133/2021 incorpora procedimentos e práticas administrativas que acabaram por se revelar exitosos nas contratações públicas brasileiras. Merece crítica a sua extensão e a pretensão de tudo regular e disciplinar.
Formato mais adequado, já sustentado em outras oportunidades, seria uma lei geral que fosse mais principiológica e aberta a espaços de regulações setoriais orientados pela racionalidade econômica de cada mercado; afinal, a dimensão jurídica deve andar em compasso com a dimensão econômica e com a dimensão financeira, o que nem sempre acontece nas contratações públicas brasileiras, causando grandes dificuldades no momento da aplicação da norma.
De todo modo, algumas premissas podem ser firmadas a partir de uma leitura diagonal da Lei n° 14.133/2021: (i) retrata a consolidação de várias regras da Lei n° 8.666/1993 (Lei Geral), da Lei n° 10.520/2002 (Lei do Pregão) e da Lei n° 12.462/2011 (Lei do Regime Diferenciado de Contratação); (ii) incorpora vários entendimentos e posições adotadas pelo Tribunal de Contas da União; (iii) expande para todos os entes federativos normas de densidade normativa inferior (ex: instruções normativas) que antes se aplicavam apenas no âmbito federal; (iv) permite colocar em prática, finalmente, as inovações do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que antes eram circunscritas a determinados objetos; (v) tomando emprestado a conhecida divisão proposta por Carlos Ari Sundfeld, incorpora no Direito Administrativo dos Clipes (contratações ordinárias de obras, serviços e compras) as inovações e sofisticações próprias do Direito Administrativo dos Negócios (concessões e parcerias público privadas); (vi) reduz a distância que existia entre o regime geral de contratação e o regime especial de contratação das empresas estatais (Lei n° 13.303/2016), que se aproximam bastante em termos de identidade material e (vii) confere maiores espaços de atuação discricionária para o gestor público, o que é salutar diante das complexidades inerentes às contratações públicas no século XXI.
Quais os principais avanços da Lei n° 14.133/2021? O que foi aperfeiçoado em relação ao regime jurídico atualmente em vigor? Serão selecionadas, ainda que topicamente, as mudanças mais relevantes que podem reduzir custos de transação nas contratações administrativas e, ainda, incrementar a sua eficiência. Por uma questão metodológica, serão divididas as inovações em 2 blocos: licitações e contratos.
As principais inovações em relação ao regime das licitações são as seguintes: (i) a apreciação da habilitação após o julgamento das propostas, afastando o anacronismo da fase prévia, tão perniciosa para o êxito das licitações públicas (art. 17, V) ; (ii) expansão do orçamento sigiloso, que concretiza as melhores práticas em licitação ao externalizar para os licitantes o preço de referência, prestigiando o princípio da competitividade (art. 24) ; (iii) previsão da fase preparatória, sem o que não é factível alcançar bons resultados na licitação (art. 18); (iv) extinção das vetustas modalidades tomada de preços e convite (art. 28); (v) introdução da modalidade de diálogo competitivo, realidade no Direito Europeu e voltada para objetos mais complexos e tecnicamente sofisticados (art. 32); (vi) estímulo a certificações do objeto com a finalidade de incrementar a qualidade (§ 6° do art. 17 e inciso III do art. 42) ; (vii) menos rigidez no cabimento das audiências públicas e possibilidade da adoção do mecanismo da consulta pública (art. 21) ; (viii) procedimentalização da contratação direta (art. 72) e (ix) criação do Portal Nacional de Contratação Pública que pode ser, seguramente, a inovação mais disruptiva da nova legislação, com a centralização das licitações e contratações em todo o país, permitindo criar um banco de dados e de informações antes nunca existente no Brasil (art. 174).
As principais inovações em matéria de contratos administrativos são as seguintes: (i) previsão de matriz de risco nos contratos administrativo de um modo geral (art. 92, inciso IX) o que, a rigor, já era possível extrair mesmo no regime da Lei 8.666/1993; afinal, contratos servem para estruturar os corretos incentivos para o cumprimento das obrigações pelas partes e alocar corretamente os riscos; (ii) prazo para resposta ao pedido de reequilíbrio econômico-financeiro, reduzindo condutas protelatórias do entes públicos em examinar tais pleitos (art. 92, XI); (iii) período de regularização de providências administrativas antes do contrato iniciar (§ 2°, art. 92), induzindo ao adimplemento de pendências que possam comprometer a execução do objeto (regula-se, finalmente, o fato da administração de modo mais objetivo); (iv) ratificação sobre a possibilidade de utilização da conciliação, mediação, dispute board e arbitragem nos contratos administrativos, concretizando a consensualidade e a segurança jurídica (arts. 151/154); (v) expansão das possibilidade de extinção do contrato, a partir da iniciativa do contratado, designadamente em razão de inadimplementos da Administração (§ 2° do art. 137); (vi) redução da discricionariedade na aplicação das sanções administrativas, diminuindo o risco de uso indevido das prerrogativas punitivas (art. 155); (vii) incorporação da racionalidade da LINDB em relação às nulidades, afastando a ideia fantasiosa de que só existem atos válidos e inválidos e trazendo o consequencialismo para o universo decisório das contratações públicas (art. 147/149) e (viii) previsão de prazos contratuais alinhados com a natureza de cada contrato administrativo (art. 105/114), afastando a equivocada ideia de que contratos com distintos objetos se submetem sempre ao mesmo prazo (na Lei n° 8.666/1993 era no máximo 60 meses).
Possível notar, portanto, que os avanços em relação à Lei n° 8.666/1993 são significativos e, seguramente, aperfeiçoarão o mercado de contratações públicas brasileiro, ainda que não seja o diploma legal idealizado pela comunidade jurídica (se é que seria possível estabelecer algum consenso sobre assunto tão complexo).
E as omissões? Com o que não se preocupou a Lei n° 14.133/2021? Ao menos com 2 temas relevantíssimos.
Em primeiro lugar, não se identificou preocupação voltada à tutela das questões concorrenciais ou medidas que possam minorar práticas anticompetitivas. O legislador foi silente e omisso quanto ao ponto, que, como se sabe, é fulcral para o bom resultado das licitações. Como dizia Marcos Juruena Villela Souto, licitação é a busca da melhor proposta no mercado e não apenas no processo. Se o mercado está dominado, não se tem efetiva competição.
Em segundo lugar, não se identificou na Lei n° 14.133/2021 instrumentos concretos que possam assegurar o fluxo financeiro e orçamentário do processo de contratação pública e resolver em definitivo o gravíssimo problema do não pagamento ou mesmo dos atrasos nos pagamentos devidos aos contratados. Não obstante essa seja uma questão também afeta ao Direito Financeiro é, seguramente, uma das causas mais perturbadoras da escorreita execução dos contratos administrativos.
Enfim, o maior foco de atenção deve ser com as sociedades empresárias que estão fora do mercado público de contratação e que restringem o alcance da competitividade no mercado público de contratos. Quantas empresas hoje não querem se aventurar a contratar com o Estado brasileiro? Quantas empresas estarão dispostas a “entrar no jogo” a partir da mudança da legislação? Se os avanços identificados na Lei n° 14.133/2021 – que são significativos – permitirem a inclusão, o acesso e mesmo a expansão de sociedades empresárias dispostas a participar de licitações e, consequentemente, a celebrar contratos com o Poder Público (e que antes não estavam pelas externalidades negativas decorrentes da Lei n° 8.666/1993) terá, indubitavelmente, cumprido o seu principal objetivo. A conferir…