O sistema brasileiro de saúde: compreender para bem contratar

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Vir ao blog da Zênite exige de mim uma rápida apresentação. A começar, preciso dizer que a Zênite foi minha escola. Estagiei nela nos dois últimos anos do curso de direito. Minha chegada ao Blog tem um quê de um agradável retorno. Mas isso já faz vinte anos. E nesse longo espaço de período, dediquei-me muito a estudar e atuar no setor da saúde. Durante esse tempo aprendi muita coisa, e quero destacar duas.

A primeira é a de que não existe independência do setor público e privado na saúde. O que há é um único sistema, cujos componentes (sejam públicos ou privados) precisam ter sua atuação simbiótica, para que, em maior ou menor medida, possam auxiliar o cidadão no exercício do direito à saúde. A segunda é a de que as contratações públicas no âmbito da saúde são extravagantes. Não porque as normas que a regem sejam muito diferentes das demais contratações, mas porque, como concluí em meu livro (Serviços Públicos de Saúde, Quartier Latin, 2019), “controlador e controlado não compreenderem o regime jurídico de prestação direita e complementar de serviços públicos de saúde”.

Quero explicar o primeiro tema, como forma de ajudar na solução do segundo.

Começo relembrando que o Estado atua na saúde em razão de uma imposição constitucional. Todos os leitores desse Blog conhecem o trecho do artigo 196 da Constituição Federal (CF) que elege a saúde como direito de todos e dever do Estado. Mas, há muito mais na CF do que a simples atribuição obrigacional. A começar pela continuidade do texto do próprio artigo 196, que, após desenhar a relação entre direitos e deveres, anota que a obrigação estatal será executada “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Há uma imposição hierárquica, pela qual as ações estatais visam primeiro a manter o indivíduo em um status saudável de vida (promoção), para depois evitar que adoeça (proteção) e, na hipótese de esses filtros falharem, garantir ao cidadão acesso aos serviços de saúde (recuperação). Tradicionalmente, promover e proteger a saúde depende de movimentos voltados à coletividade (são as ações de saúde). Recuperar a saúde, por sua vez, conecta-se a uma assistência individual (são os serviços de saúde). Esse conjunto de atividades (ações e serviço) é executado no âmbito do SUS (Sistema Único de Saúde), que congrega harmonicamente a Administração Pública em todos os seus níveis, de modo a ampliar as chances de satisfação do direito à saúde.

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Ações de saúde serão executadas de modo direito pelo Estado, pois indelegáveis. Tem-se como exemplo as atividades de autorizações, fiscalizações e sanções sanitárias. Já os serviços, que podem ser resumidos na assistência terapêutica e farmacêutica aos cidadãos, são delegáveis por meio de concessão ou permissão de serviço público, à luz dos artigos 175 e 199 da CF.

Mas o SUS não resume o sistema brasileiro de saúde. E isso fica claro também a partir da leitura do próprio artigo 196. Ao referir que o direito à saúde do cidadão será satisfeito pelo Estado mediante políticas públicas (políticas sociais e econômicas), a norma constitucional abre espaço para tantas outras ações (não necessariamente públicas) capazes de contribuir para o sucesso da missão estatal conectada à saúde.

Dentro dessas políticas públicas estão, por exemplo, o incentivo para que atores particulares (com ou sem finalidade lucrativa) prestem serviços privados de saúde. O particular não está obrigado a prestá-los, tampouco ao cidadão é imposto o consumo. Mas se estabelecida uma relação entre ambos, estarão eles desonerando a prestação pública, permitindo que os recursos estatais (financeiros, humanos, equipamentos etc.) estejam orientados para a população mais vulnerável. Por isso, o incentivo a essas relações é considerado como uma política pública. Tal lógica é chancelada pelo artigo 197 da CF, quando anota que as ações e serviços de saúde (sem distinguir as públicas das privadas) são de relevância pública.

Aqui já se vê com um bom grau de precisão o sistema brasileiro de saúde e sua amplitude transcendente ao SUS. Compõem esse sistema atores públicos e privados. O Estado protagoniza esse sistema, é claro. Cabe a ele o papel de desenvolver ações voltadas à promoção e proteção de saúde, como também promover políticas públicas, incluindo aquelas que irão incentivar relações privadas de saúde.

Mas as relações privadas não se resumem àquelas em que o prestador tem finalidade lucrativa. Na saúde, aliás, relevantíssimas são as ações privadas altruístas/beneficentes, desempenhadas por aqueles que integram o chamado terceiro setor (agentes privados que executam serviços beneficentes de impacto social). Tal qual os que atuam na saúde visando ao lucro, o terceiro setor captura a demanda pública. Mas, há nele um traço mais marcante e colaborativamente mais decisivo, na medida em que a assistência prestada pelos atores desse setor satisfaz em enorme medida as necessidades de saúde da população mais vulnerável.

Por isso, aliás, são fomentadas pelo Estado com maior intensidade, a partir da lógica do artigo 16 da Lei nº 4.320/1964 (instituidora do fomento estatal). Para disso se certificar, basta olhar a pluralidade de formas de convênio que o Estado (por sua faceta legislativa) criou para se relacionar com integrantes desse setor: convênios em espécie, termos de parceria, contratos de gestão, termos de colaboração, termos de fomento e acordos de cooperação (Leis 8.666/1993 / 14.133/2021, Leis 9.637/1998, 9.790/1999 e 13.019/2014, respectivamente). E dessa interação pública com a prestação privada beneficente sobrevém importante advertência: a prestação privada de saúde executada por entidades do terceiro setor tem cara, jeito e forma de prestação pública, mas não o é.

Finalizando esse sobrevoo pelo sistema de saúde brasileiro, cabe olhar à prestação pública, a qual poderá se valer do privado para execução de atividades-meio ou atividades-fim. As primeiras se conectam ao fornecimento de bens e serviços, por particulares, que entregarão insumos para que a própria entidade estatal execute ações e serviços de saúde. Como exemplo dessas contratações, há a aquisição de medicamentos, de materiais (seringas, luvas, equipos etc.), de equipamentos hospitalares de serviços de limpeza e manutenção. As segundas colocam o privado na condição de prestação público, fazendo as vezes do Estado. É a chamada prestação privada complementar à pública. Enquanto a contratação das primeiras se dá pela Lei Geral de Licitações e Contratos – LGL (8.666/93 – 14.133/2021), as segundas se valem LGL apenas supletivamente, norteando-se por aquilo que dispõem as Leis nº 8.987/1995 e/ou 11.079/2004.

Penso que esse resumo é fundamental para que o agente público possa melhor se localizar. A saúde brasileira é um universo, mas nada caótico. Foi concebida pelo constituinte como um sistema, no qual o Estado é o ator principal, mas conta com uma atuação decisiva e simbiótica do privado, seja como prestador, colaborador, conveniado ou contratado. Ao gestor público, cabe o papel de compreender que irá contratar (na acepção mais aberta possível da palavra) com todos os integrantes desse sistema. Mas essas relações ser darão de forma bastante distinta e sobre elas incidirão normas licitatórias e contratuais específicas. Essa compreensão não só é aliada da Administração, pois capaz de evitar a práticas de condutas inadequadas aos olhos da lei, mas também hábil a tornar menos difícil a missão estatal da satisfação do direito à saúde do cidadão.

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