De acordo com o novo regime falimentar brasileiro, instituído em 2005, pela Lei nº 11.101, “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (art. 47).
Visando atingir tal desiderato, a Lei instituiu uma série de medidas para conferir operacionalidade ao processamento da recuperação judicial, entre as quais, destaca-se a dispensa de apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, prevista no art. 52, inc. II da Lei de Falências.[1]
Ao prever a dispensa de CND, todavia, a Lei ressalvou a isenção no tocante às contratações com o Poder Público. À primeira vista, a leitura do dispositivo conduz à conclusão de que a demonstração de regularidade fiscal para as empresas em recuperação judicial é exigível para contratar ou manter a execução de contrato celebrado com a Administração.
No entanto, esse não é o entendimento adotado pelo STJ. Em atual precedente, a Corte Superior propôs a flexibilização das exigências das certidões negativas fiscais também pela Administração Pública, ao argumento de que, do contrário, a recuperação judicial não será efetiva. Veja-se os trechos que conduzem à essa orientação, extraídos do Voto do Relator Min. Luis Felipe Salomão:
“VOTO
(…)
Portanto, ao que se vê, a Lei previu, em um primeiro momento, a dispensa da apresentação de certidão negativa para o devedor continuar exercendo as suas atividades, ressalvando a isenção no tocante a contratação com o Poder Público e recebimento de incentivos fiscais; e, em um segundo momento, a exigência da apresentação da CND para o deferimento da recuperação da empresa.
Como visto, o STJ, para o momento de deferimento da recuperação, dispensou a comprovação de regularidade tributária em virtude da ausência de legislação específica a reger o parcelamento da dívida fiscal e previdenciária de empresas em recuperação judicial.
Nessa linha de intelecção, por óbvio, parece ser inexigível, pelo menos por enquanto, qualquer demonstração de regularidade fiscal para as empresas em recuperação judicial, seja para continuar no exercício de sua atividade (já dispensado pela norma), seja para contratar ou continuar executando contrato com o Poder Público.
É que, como dito naquele oportunidade, em se tratando de recuperação judicial, a nova Lei de Falências traz uma norma-programa de densa carga principiológica, constituindo a lente pela qual devem ser interpretados os demais dispositivos. A inovação está no art. 47, que serve como um norte a guiar a operacionalidade da recuperação judicial, vale dizer, ‘viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica’.
Com feito, a hermenêutica conferida à Lei n. 11.101⁄2005, no particular relativo à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que – além de não fomentar – inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação judicial, sepultando o instituto.
Isso porque é de se presumir que a empresa que se socorre da recuperação se encontra em dificuldades financeiras para pagar seus fornecedores e passivo tributário e, por conseguinte, em obter a emissão de certidões negativas de débitos; não podendo isso, contudo, significar a impossibilidade de sua recuperação, máxime para recebimento de crédito a que faz jus por ter cumprido integralmente sua obrigação contratual.
Ao revés, pelos primados da lei, deve-se possibilitar meios e condições econômicas para que a empresa supere a situação de crise.” (STJ, Recurso Especial nº 1.173.735, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. em 22.04.2014)
Diante dessa decisão, é possível concluir que, para o STJ, é inexigível, a demonstração de regularidade fiscal das empresas em recuperação judicial, seja para continuar o exercício de suas atividades, seja para contratar ou prosseguir a execução de contrato celebrado com a Administração. Essa conclusão parece bem acertada, visto que a recuperação judicial não suprime a existência e a capacidade civil do seu beneficiário. Ou seja, estar em regime de recuperação judicial, por si só, não pode impedir o particular de travar relações contratuais com terceiros ou manter aquelas existentes, inclusive com a Administração Pública.
[1] O dispositivo estabelece que:
“Art. 52. Estando em termos a documentação exigida no art. 51 desta Lei, o juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, no mesmo ato:
(…)
II – determinará a dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, observando o disposto no art. 69 desta Lei;”