A carta ou declaração de solidariedade é o documento firmado pelo fornecedor e pelo fabricante com o objetivo de estabelecer responsabilidade recíproca sobre o bem a ser fornecido.
A fixação de exigência nesse sentido em certames licitatórios é objeto constante de discussão jurisprudencial, ante a ausência de previsão legal específica nas Leis nº 8.666/93 e nº 10.520/02.
A corrente contrária à apresentação de carta de solidariedade do fabricante como condição de habilitação em licitação fundamenta o raciocínio na regra constante do inc. XXI, art. 37 da Constituição da República, que limita as exigências de qualificação técnica e econômica às indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
Nesse sentido é a orientação do TCU no Acórdão nº 1.622/10-Plenário: “(…) incabível constar em edital de licitação a exigência de qualquer documento que garanta a qualidade dos produtos adquiridos, em especial, a carta de solidariedade, porque, além de desnecessária, configura afronta aos arts. 3º, § 1º, inciso I, e 27 a 31 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.” (TCU. Acórdão nº 1.622/201, Plenário, Rel. Min. André de Carvalho, j. em 07.07.2010)
De acordo com a Corte de Contas, tal exigência seria inócua em face do art. 18 do CDC, que estabelece a responsabilidade solidária do fabricante e do fornecedor de produtos, tornando desnecessário o pedido, por parte da Administração, de declaração de solidariedade, pois a Lei já determina que existe a responsabilidade recíproca.
Em que pese essa diretriz, encontramos orientação jurisprudencial diversa em recente julgado do TRF da 4 ª Região, que defendeu a possibilidade de exigência da carta de solidariedade para fins de habilitação em pregão para a aquisição de computadores:
“Voto
[…]
Com efeito, a exigência da carta de solidariedade concretiza uma das pedras angulares do direito público: o princípio da supremacia do interesse público. É irrelevante o fato de existir solidariedade na responsabilidade civil por vícios no(s) produto(s) ou serviço(s), decorrente de legislação consumerista, uma vez que a confiança do fabricante na empresa licitante garante, de um ponto de vista pragmático, maior efetividade no fornecimento do produto ou serviço licitado, já que, muito provavelmente, não existirão batalhas judiciais para se apurar a responsabilidade por eventuais defeitos em tal fornecimento. Além disso, a carta de solidariedade também não prejudica a competitividade no procedimento licitatório do caso em tela, pois não consta no edital a indicação de produtos direcionada a determinadas marcas ou fabricantes.” (TRF da 4ª Região, Apelação Cível nº 5018007-26.2012.404.7100/RS, Rel. Des. Federal Fernando Quadros da Silva, j. em 10.12.2014)
Além da divergência de entendimento no âmbito dos Tribunais, destaca-se a inovação legislativa promovida pela Lei nº 12.462/11, que institui o RDC. O referido diploma trouxe previsão expressa acerca da possibilidade de a Administração, no caso de licitação para aquisição de bens, “solicitar, motivadamente, carta de solidariedade emitida pelo fabricante, que assegure a execução do contrato, no caso de licitante revendedor ou distribuidor” (art. 7º, inc. IV).
Diante desse panorama, é inevitável o questionamento: como conciliar essas diretrizes?
Deve-se lembrar que, independente da lei de regência, nas contratações públicas, as exigências de qualificação técnica e econômica serão legítimas sempre que se fizerem necessárias para assegurar a satisfatória execução do contrato, conforme preceitua a Constituição (inc. XXI do art. 37).
Essa determinação constitucional, ao contrário do que se pode pensar, não se restringe aos aspectos técnico e econômico-financeiro. Se o seu conteúdo se limitasse à apenas os mencionados aspectos não haveria como considerar constitucional, por exemplo, a parte final do inc. I, § 1º do art. 3º da Lei nº 8.666/93, que permite que se possa incluir condição restritiva que seja indispensável para viabilizar a plena satisfação da necessidade da Administração, mesmo diante da prescrição que veda condição restritiva. Assim, seja qual for a natureza jurídica que se pretenda atribuir à carta de solidariedade, ainda que não técnica, aplica-se a ideia constante da parte final do art. 37, inc. XXI da Carta Magna.
Logo, se em função das peculiaridades ou complexidade do objeto da contratação, for indispensável exigir que haja solidariedade entre o proponente e o fabricante pelo produto, em tese, é possível exigir-se no edital que seja comprovada tal condição de solidariedade.