A aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) no setor público tem exigido interpretações juridicamente qualificadas que sejam capazes de conciliar eventuais direitos fundamentais em tensão — em especial, a proteção à privacidade de dados pessoais e o princípio da publicidade que rege a Administração Pública. No âmbito das contratações públicas, convênios e instrumentos congêneres, essa tensão tem gerado práticas controversas, como a anonimização indiscriminada de dados pessoais, dentre outros.
No parecer n. 00006/2025/GAB/DECOR/CGU/AGU, que trata do “TRANSFEREGOV – convênios e instrumentos congêneres”, a Advocacia-Geral da União (AGU) oferece importante contribuição à hermenêutica administrativa, ao se posicionar pela legitimidade da manutenção da publicidade de documentos que contenham dados pessoais não sensíveis, quando fundamentada em bases legais autorizatórias do tratamento e lastreadas no interesse público e nas finalidades próprias dos atos administrativos.
Trata-se de parecer que converge com a construção trazida por mim em artigos anteriores como “Seria o CPF um dado pessoal “especial”? A “novela” da descaracterização de dados pessoais em documentos públicos”, ao enfatizar que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais não deve ser interpretada ou aplicada de forma isolada, tampouco pode ser instrumentalizada como fundamento genérico para restrições indevidas ao princípio da publicidade administrativa. Nesse sentido, o parecer reafirma que a LGPD deve ser compatibilizada com os deveres constitucionais de transparência, accountability e controle social, cuja inobservância compromete a efetividade da gestão pública e a concretização do interesse público primário.
A análise técnica da AGU, apoiada em fundamentos constitucionais, legais e infralegais, reafirma que o tratamento de dados pelo poder público deve observar o regime jurídico administrativo e, quando necessário, ser compatibilizado com os deveres de transparência e prestação de contas, sem perda da racionalidade jurídica ou da segurança institucional.
Essa postura institucional manifestada pela AGU em seu parecer dialoga, em meu sentir, com a necessária e contemporânea interpretação da Lei Geral de Proteção de Dados, pois como já sustentado anteriormente, a LGPD não pode ser utilizada como escudo para a opacidade na Administração Pública. Ao contrário, conforme já enfatizado, a LGPD deve ser interpretada sistemicamente, em consonância com o regime jurídico administrativo, com a Lei de Acesso à Informação (LAI) e com os princípios constitucionais que regem a atuação estatal — especialmente a legalidade, a publicidade e a eficiência.
O parecer da AGU reafirma, com precisão técnica, que os processos administrativos de contratação ou conveniais são, por sua natureza, públicos. Com base nos artigos 5º e 13º da Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações e Contratos) e no artigo 37 da Constituição Federal, o documento afirma que a transparência é princípio estruturante das contratações públicas, devendo ser preservada como regra. Com isso, a proteção de dados, embora consagrada como direito fundamental pela Emenda Constitucional nº 115/2022, não é absoluta, tampouco deve ser interpretada de forma isolada ou desprovida de ponderação.
A AGU sustenta que o tratamento de dados em processos licitatórios e contratuais encontra respaldo no artigo 7º, inciso II, da LGPD, que autoriza o tratamento de dados pessoais para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória. Além disso, destaca o §3º do mesmo artigo, que permite o tratamento de dados tornados manifestamente públicos, desde que respeitados os princípios da finalidade, boa-fé e interesse público. Tal abordagem confere à LGPD o tratamento sistemático que a própria norma exige, afastando-se da leitura fragmentada que tem promovido a ocultação indiscriminada de informações em documentos públicos.
Adicionalmente, o parecer adota com precisão metodológica a teoria da ponderação de princípios, nos moldes propostos por Robert Alexy, ao reconhecer que, em situações de tensão entre normas constitucionais de igual hierarquia — como o direito fundamental à proteção de dados pessoais (art. 5º, LXXIX, CF) e o dever de publicidade e transparência da Administração Pública (art. 37, caput, CF) —, não cabe proceder a uma simples hierarquização normativa. Ao contrário, deve-se buscar a máxima realização simultânea dos princípios em conflito, de acordo com as especificidades do caso concreto.
Essa perspectiva evita que o direito à privacidade seja tido como absoluto e que a transparência seja desconsiderada como vetor essencial de uma gestão pública que se pretende democrática. O controle social, expressamente previsto no §2º do artigo 74 da Constituição Federal, constitui uma das manifestações mais concretas da soberania popular, na medida em que permite à sociedade civil acompanhar, fiscalizar e exigir a conformidade dos atos administrativos com os parâmetros legais e éticos.
Sob essa ótica, qualquer medida de supressão de dados pessoais em documentos públicos deve ser precedida de análise rigorosa de proporcionalidade, com demonstração objetiva de que a restrição é necessária, adequada e menos gravosa à transparência estatal. Caso contrário, a simples ocultação genérica de dados, sem motivação jurídica adequada, não apenas compromete a integridade das políticas públicas, como fragiliza a legitimidade democrática, ao reduzir a capacidade de escrutínio da atuação estatal.
É nesse ponto que o parecer da AGU traz uma contribuição adicional e relevante: a orientação de que a Administração deve adotar todas as providências cabíveis para viabilizar, no prazo mais célere possível, a plena aplicação da LGPD, especialmente no que diz respeito à anonimização ou supressão dos dados pessoais excessivos constantes nos anexos dos instrumentos disponibilizados. Essa diretriz deixa claro que a publicização de dados não pode se dar de forma descuidada, mas também não pode ser impedida por um uso genérico do argumento de privacidade. Ou seja, ou é possível tratar os dados com base no princípio da publicidade — devidamente justificado — ou deve a Administração motivar adequadamente a supressão ou anonimização, em observância ao princípio da minimização do tratamento de dados previsto na LGPD.
A aplicação desmedida do sigilo, além de não encontrar respaldo legal direto, fragiliza a eficiência administrativa, gera insegurança jurídica e desestimula a transparência. É exatamente o que trouxemos em textos anteriores, quando, por exemplo, afirmamos que a prática da “descaracterização do CPF”, sem que outros dados pessoais diretos recebam o mesmo tratamento, revela uma lógica inconsistente e sem respaldo técnico. Em síntese, ou todos os dados diretos são protegidos da mesma forma, ou a proteção seletiva carece de motivação congruente, contrariando o princípio da motivação administrativa e o dever de fundamentação dos atos públicos.
Nesse sentido, o parecer da AGU também demonstra domínio dos princípios consagrados na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), ao invocar os artigos 20 e 22 como fundamentos para uma interpretação funcional e consequencialista das normas que regem a gestão pública. À luz do artigo 20, impõe-se a conclusão de que a indisponibilização generalizada dos anexos dos convênios e instrumentos congêneres, sem análise concreta das consequências práticas e sem motivação suficiente que comprove sua necessidade e proporcionalidade, configura decisão deficiente sob os pontos de vista jurídico e administrativo. Em outras palavras, a supressão de dados deve ser excepcional, fundamentada em critérios técnicos e jurídicos claros, e jamais aplicada como reflexo automático de uma leitura isolada da LGPD.
Com apoio no artigo 22 da LINDB, a AGU também ressalta que a interpretação normativa, sobretudo no âmbito da Administração Pública, deve considerar os obstáculos operacionais e limitações reais da ação estatal — incluindo, no caso concreto, o elevado volume de documentos já publicizados e as restrições tecnológicas que dificultam a imediata anonimização de dados. A imposição de soluções inflexíveis, alheias à realidade institucional, comprometeria a continuidade das políticas públicas, gerando riscos operacionais e jurídicos que a própria legislação busca evitar.
Por essa razão, o parecer corretamente propõe uma solução tecnicamente gradual, que assegure a manutenção da publicidade dos atos administrativos, ao mesmo tempo em que viabilize a adequação progressiva às exigências da LGPD. Tal abordagem revela-se não apenas juridicamente segura, mas também compatível com os princípios da razoabilidade, da boa-fé e da finalidade pública, reforçando uma postura institucional responsável e proporcional, que reconhece a centralidade do controle social e da transparência no funcionamento de um Estado Democrático de Direito.
A conclusão da AGU é clara: a publicidade dos atos administrativos, sobretudo aqueles relacionados à destinação de recursos públicos, deve prevalecer sempre que não houver motivação suficiente para o sigilo. O direito à proteção de dados não pode ser utilizado como justificativa abstrata para negar o acesso à informação, sob pena de se instaurar um regime de opacidade incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Continua depois da publicidade
Seja o primeiro a comentar
Utilize sua conta no Facebook ou Google para comentarFacebookGoogle
Assine nossa newsletter e junte-se aos nossos mais de 100 mil leitores
Esta seção, “Desvendando Licitações”, tem como objetivo apresentar os conceitos fundamentais e essenciais sobre contratações públicas. A seguir, será apresentada a definição de Credenciamento: É o processo administrativo de chamamento...
A Controladoria-Geral da União (CGU), no Guia Referencial para identificação, quantificação e mitigação de superfaturamento em contratos de bens e serviços, apresentou a definição e diferença entre superfaturamento e sobrepreço:...
Questão apresentada à Equipe de Consultoria Zênite: “As dúvidas da Administração versam sobre os elementos que devem ser considerados para a caracterização das obras comuns, tendo em vista o impacto...
A definição do preço de referência é uma etapa essencial para assegurar eficiência, economicidade e conformidade legal nas contratações públicas. Exigência da Lei nº 14.133/2021, da Lei nº 13.303/2016 e...
O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG) analisou consulta formulada por um ente municipal nos seguintes termos: “Entes Federativos não consorciados podem participar de licitações compartilhadas realizadas...
Em 2025, o Instituto Brasileiro de Direito Administrativo – IBDA celebra seus 50 anos de história e convida todos os profissionais e estudiosos do Direito Administrativo para o 39º Congresso...
Durante a vigência da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, o Tribunal de Contas da União, de forma reiterada, se opunha à possibilidade da exigência de certificação...