Licitação dispensável para contratar organizações sociais – uma supressão da Lei nº 14.133/2021

Nova Lei de Licitações

A Lei nº 14.133/2021 está em vigência desde 01 de abril de 2021. Está em vigência e pode ser aplicada. Entretanto, tem uma regra de transição prevista no art. 191[1], em virtude da qual, pelo prazo de 2 anos, a contar da publicação da nova lei, terão vigência simultânea a Lei nº 14.133/2021 e a Lei nº 8.666/1993.

A Administração Pública pode escolher, em juízo discricionário, realizar contratações diretas ou licitações com base em qualquer das duas leis.

Problema se posta a partir de 03 de abril de 2023, data em que será revogada a Lei nº 8.666/1993. Isto porque, dentre inúmeros deveres jurídicos que deverão ser cumpridos com base na nova Lei nº 14.133/2021, no que diz respeito às contratações diretas por licitação dispensável tem uma particularidade bem importante: não contempla todas as hipóteses previstas no art. 24, da Lei nº 8.666/1993.

Dentre as situações fáticas que autorizam a dispensa de licitação que foram suprimidas pela Lei nº 14.133/2021, está aquela prevista no inciso XXIV do art. 24, da Lei nº 8.666/1993, que dispõe ser dispensável a licitação “para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão”.

Assim, a questão é: a revogação desta norma, juntamente com a revogação da própria Lei nº 8.666/1993 cria uma lacuna para regular as contratações envolvendo as organizações sociais?

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Organizações sociais são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, assim qualificadas pelo Chefe do Poder Executivo, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde.[2]

As organizações sociais integram o denominado “terceiro setor” e podem desenvolver atividades de interesse público, em regime de parceria com a Administração Pública.

Este regime de parceria (aquela prevista na Lei nº 9.637/1998) é formalizado pela via do contrato de gestão. Na dicção da lei: “entende-se por contrato de gestão o instrumento firmado entre o Poder Público e a entidade qualificada como organização social, com vistas à formação de parceria entre as partes para fomento e execução de atividades relativas às áreas relacionadas no art. 1º” (art. 5º).

Podem ser consideradas, para os fins desta análise, duas relações jurídicas distintas: (1) a relação entre a Administração e a organização social para celebrar o contrato de gestão e, (2) a relação entre a Administração e a organização social para celebrar contratos de prestação de serviços para as atividades contempladas no contrato de gestão.

1.  A seleção de organização social para celebrar contrato de gestão

Uma possibilidade jurídica para celebrar contrato de gestão com organização social é pela via da inexigibilidade de licitação.

Assim se dará, se o caso concreto for de inviabilidade de competição. A inviabilidade de competição pode ocorrer, se, por hipótese, existir apenas uma organização social apta a celebrar a avença com a Administração.

Neste caso, será formalizado o contrato com inexigibilidade de licitação ou de qualquer outro processo competitivo.

Outrossim, também será inexigível a licitação, se for inviável a competição. E será inviável a competição, mesmo no caso de existir pluralidade de organizações sociais aptas a celebrar contrato de gestão com a Administração, em razão das particularidades do caso concreto, não for possível estabelecer critérios objetivos para o julgamento de qualquer disputa. Por critérios objetivos, para os fins desta análise, entenda-se: comparação objetiva de preços ou comparação objetiva de técnica. Assim se dará com base nas normas contidas no art. 25, caput, da Lei nº 8.666/1993, ou no art. 74, caput, da Lei nº 14.133/2021.

Se o caso concreto não comportar inexigibilidade de licitação, na forma das leis, será necessária a realização de processo competitivo para selecionar organização social para com ela celebrar contrato de gestão.

É possível cogitar também a realização de licitação para selecionar organização social para com ela celebrar contrato de gestão. Nesta hipótese, a modalidade adequada seria o concurso, pelo critério de julgamento de melhor técnica – melhor projeto de implementação do objeto do futuro contrato de gestão. O julgamento desta licitação ficará a cargo de banca especialmente designada, composta por, no mínimo 3 (três) membros, sendo, servidores efetivos ou empregados públicos pertencentes aos quadros permanentes da Administração Pública; e profissionais contratados por conhecimento técnico, experiência ou renome na avaliação dos quesitos especificados em edital (Lei nº 14.133/2021, art. 37, § 1º).

Também se pode defender que o processo competitivo seja realizado pela forma de chamamento público. O Tribunal de Contas da União já se manifestou neste sentido:

9.8.2.4. a escolha da organização social para celebração de contrato de gestão deve, sempre que possível, ser realizada a partir de chamamento público, devendo constar dos autos do processo administrativo correspondente as razões para sua não realização, se for esse o caso, e os critérios objetivos previamente estabelecidos utilizados na escolha de determinada entidade, a teor do disposto no art. 7º da Lei 9.637/1998 e no art. 3º combinado com o art. 116 da Lei 8.666/1993. (TCU, Acórdão 3.239/2013, Plenário.)

Caso escolhida esta via, pode ser aplicada, por analogia, a sistemática de chamamento público prevista na Lei nº 13.019/2014 – o que se defende mesmo em face da norma contida no art. 3º, III da lei, que preceitua que as disposições legais nela contidas não se aplicam aos contratos de gestão.[3]

Nos termos de dita lei, chamamento público é “procedimento destinado a selecionar organização da sociedade civil para firmar parceria por meio de termo de colaboração ou de fomento, no qual se garanta a observância dos princípios da isonomia, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos (art. 2º, XII).

Este procedimento tem roteiro processual bem definido nos arts. 23 e seguintes da Lei nº 13.019/2014, que pode servir de referência importante para aqueles que pretenderem, com fundamento em precedente do Tribunal de Contas da União, selecionar organização social pela via do chamamento público.

2. A seleção para contratar serviços relacionados às atividades contempladas no contrato de gestão

Neste caso, está em execução um contrato de gestão e há necessidade de contratação de terceiros para realizar atividades que estão contempladas na avença.

Certo é que inúmeras atividades contempladas no contrato de gestão deverão ser executadas diretamente pela organização social dele signatária. Contudo, a organização social demandará, eventualmente, contratar terceiros para executar atividades necessárias ao fiel cumprimento das obrigações assumidas no contrato de gestão.

Toda organização social é entidade dotada de natureza privada. A rigor, em suas atividades ordinárias uma organização social não é obrigada a realizar licitação prévia às suas contratações. Porém, ao celebrar o contrato de gestão, as organizações sociais passam a realizar atividades tipicamente públicas, e a gerir bens e recursos públicos. Esta conjugação de fatores atrai a aplicação do princípio licitatório, como antes já se defendeu:

Embora não referido expressamente na legislação de regência das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público, o princípio licitatório é um dos princípios a serem observados e ao qual está subordinada a conduta dos entes privados em certas situações que envolvem a gestão de recursos públicos. Ainda que se reconheça que a norma contida no inciso XXI do artigo 37 da Constituição Federal tem por destinatário original a Administração Pública, parece evidente que a dinâmica instituída pelas novas formas de persecução do interesse público e de gestão de recursos públicos, mediante atuação de particulares, clama por estender normas concernentes ao regime jurídico-administrativo à conduta das pessoas privadas. Desta feita, é de se buscar sempre, ainda que por ação intermédia de particulares, a busca da proposta mais vantajosa e assegurar a observância do princípio da isonomia sempre que a conduta envolver a gestão de recursos públicos. Buscar a proposta mais vantajosa implica instaurar um processo competitivo no qual a proposta vencedora seja a que melhor atende o interesse público, inclusive do ponto de vista da economicidade. Assegurar a observância do princípio da isonomia implica proporcionar, a quem tenha legítimo interesse, a oportunidade de travar relações negociais da qual possa auferir legítimos ganhos econômicos em decorrência da gestão de recursos públicos. O processo competitivo é instaurado para obter vantagem pública e para tornar pública a oportunidade de auferir rendimentos da relação negocial que envolve recursos públicos.[4]

Nesta linha, a seleção pelas organizações sociais, de pessoa física ou jurídica, para com ela contratar serviços relativos às atividades contempladas no contrato de gestão deverá ser precedida de procedimento competitivo. A este propósito, também já se defendeu antes que:

As normas para a seleção prévia aos contratos a serem firmados pelo Terceiro Setor com o uso de recursos públicos devem ser estabelecidas em regulamentos próprios. Estes regulamentos podem prever mecanismos simplificados e céleres de seleção, contanto que tenham conteúdo compatível com os princípios aplicáveis a estas entidades responsáveis pelo uso do dinheiro público. Não se exige, portanto, que os regulamentos próprios das entidades repitam as normas da lei de licitações. Dentro da moldura constitucional há espaço para inovações, sem que haja vinculação expressa a procedimentos formais da Lei nº 8666/93. Este espaço criativo foi assegurado pelo legislador, eis que de outro modo teria feito constar taxativamente a aplicação da referida lei de licitações a estas entidades. A elaboração dos regulamentos próprios constitui conduta revestida de singular natureza e especificidade. A sua concepção será fruto de um processo de tensão dialética que assegure a celeridade e dinamicidade próprias do regime de direito privado, sem descurar dos valores e princípios fundamentais ao regime de direito público, em especial neste caso, no tocante à gestão de recursos públicos, à busca da proposta mais vantajosa, e ao princípio da isonomia.

A competência para a edição do regulamento próprio, no caso das organizações sociais, é do Conselho de Administração, nos termos do artigo 4º, VIII da Lei nº 9637/98.[5]

A Administração Pública pode exigir, no processo de licitação ou de chamamento público para selecionar a organização social, que uma das condições para execução do contrato de gestão seja a elaboração e aplicação de regulamento próprio de licitação e de contratação com recursos públicos transferidos pela via do pacto.

Tais regulamentos próprios podem prever, à similaridade das normas licitatórias da Administração Pública, hipóteses de contratação direta – que, por força da competência privativa da União para editar normas gerais de licitações e contratos, devem ser equivalentes àquelas previstas na Lei nº 8.666/1993 ou na Lei nº 14.133/2021.

Conclusões objetivas

  1. A escolha de organização social para celebrar contrato de gestão não é livre, mas vinculada aos princípios que regem a Administração Pública, em especial, o princípio licitatório;
  2. A seleção de organização social para celebração de contrato de gestão comporta inexigibilidade de licitação, licitação na modalidade de concurso por melhor técnica, ou chamamento público, com aplicação por analogia do procedimento previsto na Lei nº 13.019/2014;
  3. A contratação de terceiros, por parte da organização social, para prestar serviços contemplados no contrato de gestão deve ser precedida de processo competitivo, preferencialmente lastreado em regulamento próprio da entidade, editado e aprovado pelo Conselho de Administração.
  4. Até 03 de abril de 2023 está vigente a norma contida no art. 24, XXIV da Lei nº 8.666/1993 e pode ser aplicada.

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[1] Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.

[2] Lei nº 9.637 de 15 de maio de 1998.

[3] Posição também defendida por Marçal Justen Filho ao comentar a norma do art. 24, XXIV da Lei nº 8666/93: “Não sendo hipótese de inexigibilidade, o procedimento seletivo deverá seguir o modelo básico da Lei nº 13.019/14. Deve ser promovida oportunidade para disputa entre potenciais interessados ainda que não subordinada às modalidades específicas de algum dos diplomas pertinentes ao tema” (Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 552.

[4] SANTOS, José Anacleto Abduch. Terceiro Setor – Empresas e Estado. Licitação e Terceiro Setor. Belo Horizonte: Editora Forum, 2007, p. 296.

[5] Op. Cit. 302.

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