Dispensa em razão do valor: critérios para evitar o fracionamento indevido de despesas  |  Blog da Zênite

Dispensa em razão do valor: critérios para evitar o fracionamento indevido de despesas

Contratação diretaNova Lei de LicitaçõesPlanejamento

Questão apresentada à Equipe de Consultoria Zênite:

“As dúvidas da Administração versam sobre os critérios que devem orientar as contratações por dispensa em razão do valor à luz do novo regime de contratação pública da Administração direta, autárquica e fundacional, instituído pela Lei nº 14.133/2021.”

DIRETO AO PONTO

Conclui-se que, em relação à dispensa em razão do valor, além do limite propriamente dito que foi ampliado, a Lei nº 14.133/21 incorporou as diretrizes que vinham sendo aplicadas pelos órgãos de controle, especialmente o TCU, no que tange aos critérios que devem ser avaliados para evitar o fracionamento indevido de despesas.

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Nesses termos, cada unidade gestora deve verificar, dentro do que for previsível, o valor total estimado de gastos com objetos de mesma natureza (mesmo ramo de atividade) a serem contratados ao longo do exercício financeiro, para, em função desse valor concluir pelo cabimento da dispensa de licitação prevista no art. 75, I e II, da Lei nº 14.133/2021.

Sob essa perspectiva, entende-se que poderá restar configurado o fracionamento indevido de despesas se o gasto previsível estimado com objetos de mesma natureza, no exercício orçamentário, por unidade gestora, superar o limite legal para a contratação direta por dispensa de licitação em razão do valor, ainda que, após a contratação por dispensa até o limite legal, a Administração contrate o “excedente” via licitação.

Somente se afastaria a configuração do fracionamento se a demanda excedente ao limite legal fosse de fato extraordinária (imprevisível), decorrente de necessidade constatada em momento posterior à elaboração e à execução do planejamento de ações para o exercício.

Frise-se, por fim, que no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, a Instrução Normativa nº 67/2021, em seu art. 4º, § 2º, definiu como “ramo de atividade” outro critério para o enquadramento de objetos de mesma natureza.

FUNDAMENTO

Para tratar do assunto, é preciso ter em vista que um dos principais riscos envolvendo a análise de cabimento da contratação direta por dispensa de licitação em função do valor consiste na configuração do fracionamento indevido de despesas.

O Manual de Licitações e Contratos do Tribunal de Contas da União define o fracionamento de despesa nos seguintes termos:

Fracionamento, à luz da Lei de Licitações, caracteriza-se quando se divide a despesa para utilizar modalidade de licitação inferior à recomendada pela legislação para o total da despesa ou para efetuar contratação direta.

[…]

Em resumo, se a Administração optar por realizar várias licitações ao longo do exercício financeiro, para um mesmo objeto ou finalidade, deverá preservar sempre a modalidade de licitação pertinente ao todo que deveria ser contratado. Vale dizer, ilustrativamente: se a Administração tem conhecimento de que, no exercício, precisará substituir 1.000 cadeiras de um auditório, cujo preço total demandaria a realização de tomada de preços, não é lícita a realização de vários convites para compra das cadeiras, fracionando a despesa total prevista em várias despesas menores que conduzem à modalidade de licitação inferior à exigida pela lei.

[…]

Não raras vezes, ocorre fracionamento da despesa pela ausência de planejamento da Administração. O planejamento do exercício deve observar o princípio da anualidade do orçamento. Logo, não pode o agente público justificar o fracionamentoda despesa com várias aquisições ou contratações no mesmo exercício, sob modalidade de licitação inferior àquela exigida para o total da despesa no ano, quando decorrente da falta de planejamento.”1 (Destacamos.)

Assim é que, por força do princípio da anualidade orçamentária, a Administração tem o dever de prever seus gastos e planejar todas as suas contratações de objetos de mesma natureza ao longo do exercício financeiro.

Ainda que a Lei nº 8.666/93 não tenha definido, ao menos textualmente, esse critério, convencionou-se adotar como parâmetro para definição do que se deve entender por parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior vulto que possa ser realizada de uma só vez, o conjunto de contratações previsíveis envolvendo objetos de mesma natureza, ao longo de determinado exercício orçamentário.

Nesses termos, antes de instaurar determinada licitação ou proceder à contratação direta, compete à Administração verificar, dentro do que for previsível, o valor total estimado de gastos com objetos de mesma natureza a serem contratados no exercício vigente, para, em função desse valor concluir pelo cabimento da dispensa de licitação pelo valor (art. 24, incs. I, II e parágrafo único, da Lei nº 8.666/93).2

Se a soma dos gastos previsíveis com objetos de mesma natureza durante o ano extrapola o limite legal de dispensa pelo valor, não se pode utilizar essa hipótese de contratação direta. Todas as contratações ensejarão licitação.

Sobre o assunto, confira alguns precedentes do Tribunal de Contas da União, citado a título de referência, que fazem a análise acima justamente sob o enfoque do dever de planejamento da Administração:

Acórdão nº 2.923/2017 – Segunda Câmara

“Relatório

Com relação a essa matéria, o entendimento desta Corte de Contas é de que a realização de contratações ou aquisições de mesma natureza, em idêntico exercício, cujos valores globais excedam o limite legal previsto para dispensa de licitação, demonstra falta de planejamento e caracteriza fuga ao procedimento licitatório e fracionamento ilegal da despesa.Nesse sentido são os Acórdãos 1.620/2010-TCU-Plenário, 4.279/2009-TCU-1ª Câmara, 834/2008-TCU-1ª Câmara, 1.559/2008-TCU-2ª Câmara, 1.973/2008-TCU-1ª Câmara, e 370/2007-TCU-2ª Câmara.

Dessa forma, a utilização de dispensa de licitação, com fundamento no baixo valor, para a aquisição ou contratação de serviços, cujos montantes globais ultrapassem os limites previstos normativamente, configura fracionamentode despesa, e vai de encontro à legislação vigente e à jurisprudência do TCU.” (Destacamos.)

TCU – Acórdão nº 2.636/2008 – Primeira Câmara

As compras devem ser planejadas por exercício, mediante processo licitatório, evitando-se compras diretas com dispensa de licitação, a partir de fracionamento da despesa.” (Destacamos.)

TCU – Acórdão nº 3.550/2008 – Primeira Câmara

Veda-se a contratação por dispensa de licitação fundada no art. 24, inciso II, da Lei 8.666/1993 quando o somatório dos gastos realizados ao longo do exercício com determinada despesa supera o limite imposto pelo dispositivo supradito. Devem ser contratados na mesma licitação, os objetos de futuras contratações que sejam similares por pertencerem a uma mesma área de atuação ou de conhecimento.” (Destacamos.)

TCU – Acórdão nº 743/2009 – Plenário

“A Administração deve realizar planejamento prévio de seus gastos anuais, de modo a evitar fracionamento de despesas de mesma natureza e a realizar procedimentos licitatórios dentro das modalidades adequadas.” (Destacamos.)

TCU –Acórdão nº 1.046/2009 – Segunda Câmara

O administrador público deve realizar planejamento anual para compras, a fim de evitar o fracionamento irregular de despesa e a fuga ao procedimento licitatório adequado.” (Destacamos.)

Ao que tudo indica, foi sob essa perspectiva que a Lei nº 14.133/2021 instituiu os critérios que devem ser observados para avaliar o cabimento da contratação direta por dispensa de licitação em razão do valor:

“Art. 75. É dispensável a licitação:

(…)

§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput deste artigo, deverão ser observados:

I – o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora;

II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.” (Destacamos.)

Essa disciplina permite entender que, se o gasto estimado com objetos de mesma natureza, no exercício orçamentário, por unidade gestora, superar o limite legal para a contratação direta por dispensa de licitação em razão do valor, não será possível realizar nenhuma contratação direta desse objeto com esse fundamento.

Ainda que a Lei nº 14.133/2021 não tenha definido um conceito jurídico determinado, esta Consultoria entende possível compreender como objetos de mesma natureza todos aqueles relativos a um mesmo ramo de atividade.

Nesse sentido, objetos de mesma natureza constituem um “gênero”, do qual são “espécies” itens que se inserem em um mesmo ramo de atividade. Como exemplo, o “gênero” material de limpeza. Já o sabão em pó, o detergente de louças, o desinfetante e o limpa vidros são todos materiais/itens distintos entre si, mas por se enquadrarem em um mesmo ramo de atividade, podem ser considerados espécies do gênero material de limpeza.

Para a Consultoria Zênite, adotada essa compreensão, podem ser considerados objetos de mesma natureza aqueles cuja natureza e destinação sejam similares, guardando assim pertinência. Além disso, pode-se agregar, como mais um fator para essa análise, o nicho provedor de mercado.

No mesmo sentido, forma-se a doutrina de Edgar Guimarães e Ricardo Sampaio, ao comentarem as disposições da Lei nº 14.133/2021 sobre o fracionamento de despesas:

“Desse modo, ainda que a nova Lei de Licitações não tenha resolvido por completo eventual indefinição do termo “objetos de mesma natureza”, deixou claro que a aferição do valor limite para a contratação direta por dispensa de licitação em razão do valor deverá considerar o somatório do valor estimado a ser despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora com objetos de mesma natureza, assim entendidos como aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.

Em vista da redação legal, entendemos que a definição de “objetos de mesma natureza” deve tomar em consideração a natureza técnica dos objetos analisados e o segmento de mercado no qual são disponibilizados. Com base nessa compressão, impressora não deve ser considerada objeto de mesma natureza de cartucho e toner, por exemplo. Além de o primeiro ser um bem permanente e o segundo um bem de consumo, existem claras diferenças de concepção técnica e, para além disso, os potenciais interessados em contratar cada um desses objetos com a Administração se inserem em segmentos de mercado distintos.”3

Cumpre informar, no entanto, que, no âmbito da Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, a Instrução Normativa SEGES/ME nº 67/2021 definiu outro critério para o enquadramento de objetos de mesma natureza:

“Art. 4º Os órgãos e entidades adotarão a dispensa de licitação, na forma eletrônica, nas seguintes hipóteses:

(…)

§ 1º Para fins de aferição dos valores que atendam aos limites referidos nos incisos I e II do caput, deverão ser observados:

I – o somatório despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora; e

II – o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações no mesmo ramo de atividade.

§ 2º Considera-se ramo de atividade a linha de fornecimento registrada pelo fornecedor quando do seu cadastramento no Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores (Sicaf), vinculada: (Redação dada pela IN Seges/MGI n.º 8 de 2023).

I – à classe de materiais, utilizando o Padrão Descritivo de Materiais (PDM) do Sistema de Catalogação de Material do Governo federal; ou

II – à descrição dos serviços ou das obras, constante do Sistema de Catalogação de Serviços ou de Obras do Governo federal.”

Atente-se, ainda, que a Lei nº 14.133/2021 também não definiu um conceito jurídico determinado para esclarecer o que se deve entender por “unidade gestora”. Em razão disso, pode-se cogitar uma série de critérios, desde que compatíveis com a sistemática legal e a natureza da contratação direta, qual seja de exceção ao dever de licitar.

Nesse sentido, destacamos, mais uma vez, a compreensão sugerida por Edgar Guimarães e Ricardo Sampaio ao comentarem o dispositivo da Lei nº 14.133/2021:

“De acordo com essas disposições, a aferição do fracionamento deverá ocorrer por unidade gestora de recursos públicos. Ainda que a Lei nº 14.133/2021 não estabeleça essa condição expressamente, entendemos possível concluir que, se um mesmo órgão ou entidade possuir mais de uma unidade gestora, assim consideradas as unidades com competência para gerir recursos orçamentários de modo a empenhá-los para fazer frente a realização de despesas, cumprirá aferir o fracionamento com base nas ações de cada unidade gestora, não se impondo realizar qualquer tipo de somatório.”4

À luz do exposto, verifica-se que, se o somatório da despesa realizada pela unidade gestora, ao longo do exercício financeiro, com objetos de mesma natureza, supera o limite previsto no art. 75, I e II da Lei nº 14.133/2021, então, contratar diretamente com base neste dispositivo até o limite legal e, posteriormente, celebrar nova contratação do mesmo objeto a partir de licitação para registro de preços, caracterizaria, em princípio, o fracionamento indevido da despesa.

Diz-se a princípio, porque se a demanda em questão decorrer de fato superveniente, imprevisível, seria possível desconsiderá-la para aferição do valor limite para contratação direta por dispensa de licitação. Logo, se a despesa posterior não era passível de planejamento, o montante destinado a fazer frente à sua contratação não seria computado para fins de controle em torno do fracionamento de despesa.

A respeito do assunto, Edgar Guimarães e Ricardo Sampaio comentam:

“Ainda em relação à disciplina instituída pelo § 1º do artigo 75 da Lei nº 14.133/2021, denota-se que a verificação do cabimento da dispensa de licitação em razão do valor está diretamente associada a capacidade de planejamento da Administração. Disso decorre, então, que eventuais necessidades supervenientes ao planejamento e impossíveis de serem por ele abarcadas, não poderão ser consideradas para efeito de determinar o dever de licitar ou a configuração de fracionamento indevido da despesa. Ou seja, não se impõe o dever de aferir o somatório da despesa inicialmente estimada e passível de ser considerada por ocasião do planejamento das ações administrativas com o valor da despesa decorrente de situação superveniente de natureza imprevisível ou que não possa se submeter ao dever de planejar.

Significa dizer, se o valor individualmente considerado da despesa superveniente autorizar a contratação direta por dispensa em razão do valor, ainda que o somatório total das despesas ordinária e extraordinária ultrapasse o limite para tanto, a rigor, não se impõe o dever de licitar.

Ideia em sentido contrário sujeitaria os gestores públicos a obrigação de preverem situações imprevisíveis, o que é material e humanamente impossível. Mas atente-se, não se deve confundir necessidades supervenientes com defeito de planejamento. Não são todas as despesas não consideradas na ação de planejamento que estarão abrangidas por essa regra excepcional, mas apenas aquelas que, efetivamente, forem determinadas por razões sobrevindas e insuscetíveis de qualquer planejamento.”5 (Destacamos.)

NOTAS E REFERÊNCIAS

Licitações e contratos: orientações e jurisprudência do TCU. 4. ed. rev., atual. e ampl. Brasília: TCU, Secretaria Geral da Presidência: Senado Federal, Secretaria Especial de Editoração e Publicações, 2010. p. 104-105.

Ainda, no regime da Lei nº 8.666/1993, quando o contrato admitir prorrogação (art. 57, inc. I, II e IV, da Lei nº 8.666/93), deve-se considerar todo o período da sua possível duração.

GUIMARÃES, Edgar e SAMPAIO, Ricardo. Dispensa e inexigibilidade de licitação: Aspectos jurídicos à luz da Lei nº 14.133/2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p.114.

GUIMARÃES, Edgar e SAMPAIO, Ricardo. Dispensa e inexigibilidade de licitação: Aspectos jurídicos à luz da Lei nº 14.133/2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 113.

GUIMARÃES, Edgar e SAMPAIO, Ricardo. Dispensa e inexigibilidade de licitação: Aspectos jurídicos à luz da Lei nº 14.133/2021. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 136.

 

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Como citar o conteúdo do Blog Zênite:
ZÊNITE, Equipe Técnica. Nova Lei de Licitações e a dispensa em razão do valor: critérios para evitar o fracionamento indevido de despesas. Blog Zênite. 28 mai. 2025. Disponível em: https://zenite.blog.br/dispensa-em-razao-do-valor-criterios-para-evitar-o-fracionamento-indevido-de-despesas/. Acesso em: dd mmm. aaaa.

 

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